sábado, maio 09, 2009



Cuidado com as trevas

ou

A verdadeira história da Greve dos Jornalistas de 1979



Foto Jesus Carlos


Perseu Abramo discursa na assembléia do Tuca, 22 de maio de 1979, que decretou a greve. À sua direta, em pé, de camisa escura, David de Moraes, presidente do Sindicato, e ao seu lado, Francisco Wianey Pinheiro, da diretoria.

A verdade emerge", disse o então editor do Washington Post na época do escândalo de Watergate. Trinta anos depois da greve dos jornalistas de maio de 1979, o mundo mudou, mudou a profissão, mudou a tecnologia.

Mas a História permanece e deve ser contada. Vivemos tempos em que alguns se sentem no direito de reescrever a História ao seu modo, para contemplar interesses escusos. Foi o que ocorreu com uma edição especial do jornal Unidade, do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, inexplicavelmente lançada em março, durante a eleição que, por 653 votos a 515, deu vitória ao presidente da chapa de situação.

Um universo de votantes de 1.168 jornalistas em todo o Estado dá bem a dimensão de a quantas anda o sindicalismo: a assembléia que decretou a greve, em 22 de maio de 1979, no Tuca, teve a participação de 1.692 jornalistas...

A edição especial do Unidade não entrevistou o então presidente David de Moraes, nem sua diretoria. David foi contatado por telefone por uma pessoa que não entendia o que ele dizia, ele indicou que o repórter consultasse suas declarações ao longo dos anos no próprio Unidade. O que não foi feito.

Mas conseguiram entrevistar os donos de jornais - Folha e Estado, inaugurando no Sindicato dos Jornalistas uma era da modernidade líquida, em que patrões são ouvidos sobre movimentos paredistas, mas não a diretoria eleita pelos trabalhadores. Entretanto, aqui vamos contar a verdadeira história daquela greve, na gestão da diretoria de um sindicato de contribuição fundamental no processo de redemocratização do país.

Não é a "nossa" História, são as nossas concepções sobre o que vimos e vivemos na greve. Lembrem-se: estávamos numa ditadura. O general Figueiredo - aquele do princípio gentil do “prendo e arrebento” - substituíra o general Geisel em 15 de março de 1979.

A diretoria da gestão David de Moraes havia sido eleita depois de passarmos pelo terror dos assassinatos de Herzog, a 25 de outubro de 1975, e do operário Manoel Fiel Filho em 17 de janeiro de 1976, ambos torturados e mortos em celas do Doi-Codi e , segundo o regime, suicidas. No mesmo ano da greve, em outubro de 1979, o líder da Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo, Santo Dias da Silva foi assassinado por um policial militar durante um piquete em Santo Amaro, zona sul de São Paulo.

Além de um movimento trabalhista, tratava-se de uma greve política, em meio a greves de metalúrgicos, bancários, enfim, das categorias mais organizadas do movimento sindical de então. Eu fiz parte da mesa das assembléias da greve, como secretária do presidente Quartim de Moraes, ao lado do vice-presidente Augusto Nunes e da secretaria Lucila Camargo. Também participei dos piquetes, da rádio ZYCCRR (Conselho Consultivo de Representantes de Redação), que com megafones informava e divertia os piqueteiros, vivi as dores e agruras daqueles dias agitados. Mas cheios de vibração, de vida, de ideais.

Não consigo me lembrar de muita coisa agora, prefiro louvar meus bravos companheiros, especialmente David de Moraes, que pagou um preço muito alto por sua integridade e retidão e se tornou um exemplo para todos nós.

Mas por tudo se paga um preço, a vida tem me ensinado: pela coragem ou pela covardia, pela espinha ereta ou pela genuflexão, pela ética ou a falta dela, pela omissão ou a participação, por sua alma vendida ou por não ter preço. É preferível pagar o alto preço da integridade e dormir em paz.

É em homenagem ao querido David, e a todos os bravos companheiros que enfrentaram aquela barra tão pesada de 1979, e a razzia que se seguiu – muitos ficaram anos sem conseguir emprego, outros nunca mais puderam voltar às grandes redações - que será contada aqui a história daqueles dias de maio.









"Os jornalistas e sua greve: consciência de classe e debate político"



Foto Jesus Carlos
Decretação da greve em assembléia no Tuca, 22 de maio de 1979.


Excertos do artigo de Marco Antonio Roxo da Silva, apresentado no II Encontro Nacional da Rede Alfredo de Carvalho (Florianópolis,2004) mestrado em comunicação pela Universidade Federal Fluminense em 2003 com dissertação sobre o mesmo tema.

"A greve em questão ocorreu em maio de 1979. Os jornalistas de São Paulo reivindicavam 25% de aumento salarial e imunidade para os representantes sindicais nas redações. Duas assembléias foram realizadas. A primeira, na Igreja da Consolação, no dia 17 de maio, com presença de 1.500 jornalistas. A proposta de greve, apesar de aprovada, não atingiu o quorum qualificado de dois terços dos votantes, conforme deliberado pelo Comando Geral de Mobilização. A segunda, no início da noite do dia 22 daquele mês, no teatro da PUC de São Paulo, o TUCA, contou com a presença de 1.692 jornalistas. A proposta de greve geral foi aprovada por 90% dos profissionais presentes. Não houve propostas alternativas. Somente um voto contra.

Mesmo diante dessa unanimidade, os sindicatos patronais (de jornais e revistas, rádio e televisão) não modificaram a proposta inicial de 16% de antecipação, a ser descontada na data base da categoria, em dezembro do mesmo ano. Diante do impasse, no dia 28 do mesmo mês, o Tribunal Regional do Trabalho, por unanimidade, julgou a greve ilegal. O resultado abriu espaço para a retaliação das empresas, que iniciaram um processo de demissão de mais de 200 grevistas.

(...) Perseu Abramo, rememorando a greve dez anos depois, afirmou que o movimento teve duas motivações básicas: a primeira, a luta por melhores condições de trabalho; a segunda, o clima geral do país. “Naquela época todo mundo entrava em greve”.



"Os jornalistas e sua greve: consciência de classe e debate político-II



Foto Jesus Carlos
Ao centro Fernando Morais e Ottoni Fernandes conversando com policial.

Fúlvio Abramo afirmou que a decisão de uma greve deve levar em conta o consenso de uma maioria organizada e uma análise completa da categoria frente ao patronato. Segundo ele, os jornalistas não consideraram um dado relevante: as mudanças estruturais da imprensa, que passou de atividade artesanal para uma fase industrial criando novas categorias de trabalhadores e modificando a natureza do jornal. Essa modificação era oriunda da presença de critérios administrativos, importantes para ampliar o prestígio político e empresarial do jornal.
(Diretor do Diário do Comércio na época. As opiniões do jornalista foram emitidas em debate realizado no SJPSP, em 06 de agosto de 1979, sobre a greve dos jornalistas. Participaram: Fausto Cupertino e Otonni Fernandes, da Gazeta Mercantil, Carlos Tibúrcio, membro do CCRR demitido de O Estado de S. Paulo em dezembro de 1978, trabalhou no alternativo Em Tempo, estando hoje em dia na assessoria de imprensa da Secretaria Nacional dos Direitos Humanos e Lia Ribeiro Dias, diretora do SJPSP e demitida em função da greve por O Estado de S. Paulo e atualmente empresária no ramo da comunicação. Os dados em relação ao lugar que os jornalistas ocupavam no período dos debates foram tirados do Unidade, 49, agosto de 1979, pp. 4-6.)
O jornal deixou de ser propriedade de jornalista e praticamente virou uma grande empresa, manipulada por grandes negociantes que o transformaram numa fonte de lucro, numa fonte de poder. Ainda que se oponha ao governo, o jornal não se opõe ao Estado, ao domínio de classe. Em face disso, o jornal é uma potência muito maior que no passado (Unidade, 49, agosto de 1979, p. 4.)

O velho antagonismo de classe permanece presente com o desenvolvimento empresarial dos jornais. Ele explica o controle da opinião pública. Em termos conjunturais, esses elementos se associavam ao aumento do exército de reserva alimentado pelas escolas de comunicação. Assim, em maio de 1979 não havia “clima” para uma greve, a não ser que a maioria estivesse disposta a levar adiante o movimento e suportar as suas conseqüências.

Segundo Fúlvio, não houve tempo para conscientizar a categoria sobre esses elementos. As assembléias massivas podiam indicar uma disposição espontânea para a greve, mas não uma participação consciente dos jornalistas. A falta desta levou parte das lideranças a incentivarem os piquetes. Mas o ponto central era a falta de ênfase na questão salarial. Para uma categoria de ampla diversidade ideológica, somente demandas salariais bem definidas levam à unidade. Pois os jornalistas não eram categoria de massa, de operários, em que esses interesses grupais não interferem nos objetivos gerais. Para conseguir a adesão de uma categoria dividida entre uma heterogeneidade grande de pensamento político e até do que deve ser o sindicato, nossa preparação deve ser a de conseguir uma coincidência de objetivos em torno de problemas principais. Aí é que grande parte do nosso movimento falhou. Acho que o trabalho de unificação em torno do objetivo salarial deve ser desde já. (Idem Ibidem.)

Em relação à derrota, Carlos Tibúrcio tinha a mesma opinião que David de Moraes, atribuindo a responsabilidade pelos momentos de vacilo dos grevistas a alguns jornalistas, que, prevendo uma derrota mais fragorosa, pediram recuo mais cedo do que era viável. Com isso
(Idem, p. 5.) , eles abriram espaço para endurecimento dos patrões.
Porém, quem eram esses jornalistas? Quem fez essas propostas de retorno ao trabalho? Segundo David de Moraes, eram setores numericamente inexpressivos, mas importantes do ponto de vista político, pois exerciam liderança sobre a categoria.

A nossa categoria tem um setor que está no alto, que ganha mais, que é, na falta de outra palavra, uma elite. No caso dos metalúrgicos, esse pessoal fica fora da vida do sindicato. No nosso caso essas pessoas têm vida sindical ativa. E mais, têm a veleidade, não sei se consciente, de acreditar que participam do poder, por estarem muito próximo dele... são pessoas, bons companheiros, que por exemplo, participam dos projetos dos jornais. E se integram de tal forma nesses projetos que perdem a perspectiva de que são jornalistas. Eles esquecem que aquele profissional que ganha entre Cr$ 10 a Cr$ 12 mil também é companheiro dele. Não se identifica mais com ele, pois está muito perto do poder. E se ilude. Chega uma hora que o patrão pega qualquer um. (Entrevista ao Pasquim, 6 de junho de 1979.)

Haveria, nesse sentido, uma aristocracia entre os jornalistas? Evidentemente, o nosso interesse não é classificar os jornalistas segundo o posicionamento adotado no movimento, nem fazer uma interpretação fiel dos fatos, mas investigar mais as divisões existentes na categoria, os sistemas que consagravam prestígio a esses atores e se eles tinham correspondência ou não com o ativismo sindical. Assim, não há como não fazer, através da fala de David de Moraes, uma remissão à posição de Cláudio Abramo (Folha de S. Paulo), Mino Carta (Isto É), Milton Coelho da Graça (Editora Abril) e Roberto Muller (Gazeta Mercantil), grandes reformadores de jornais de São Paulo e homens que cunharam seu prestígio jornalístico na resistência ao regime militar e na defesa de uma relativa autonomia interpretativa dos profissionais de imprensa durante esse período. Eram lideranças e exerciam influências dentro da categoria.

Esses jornalistas, todos ocupando cargos tidos como de confiança dentro das empresas, achavam que o movimento grevista não tinha perspectivas de êxito. Não sabemos em detalhes a posição do conjunto desses profissionais, mas Cláudio Abramo deixou claro que, para eles, o desenvolvimento técnico dos jornais teria exigido um outro tipo de estratégia de paralisação, que em alguns casos teria de chegar próximo aos atos de sabotagem.
(Claudio Abramo, A regra do jogo.1988.)
A avaliação que faço da greve de 1979 é que foi uma atitude muito ingênua por parte da categoria. Teria sido possível bloquear a produção dos jornais, mas para isso teria sido preciso um conhecimento técnico e eletrônico que os jornalistas não tinham. Eles não tinham nem noção disso. Teria sido possível bloquear o telex, mas seria necessário chegar quase ao nível da sabotagem. Em suma, a greve foi um suicídio.
Com essa visão, os jornalistas citados acima tentaram fazer uma mediação entre o SJPSP e os sindicatos patronais. Depois de discutirem, eles chegaram a uma proposta levada a David de Moraes. A base da proposta era: 1) estabilidade dos grevistas, por um prazo de 90 dias; 2) o pagamento dos dias parados; 3) que a imunidade dos representantes de redações fosse discutido também num prazo de 90 dias. Quanto à proposta salarial, o índice era “muito menos do que o Sindicato reivindicava. Conforme Abramo, David de Moraes não aceitou a proposta. “A greve estava perdida (Idem Ibidem.)

No olhar de Cláudio Abramo, os jornalistas tinham perdido a importância sindical em função dos salários altos, posições, vantagens e compromissos de não fazer greve, de não cruzar os braços, num diagnóstico até certo ponto similar aos anteriores. “Hoje está instituído um sistema de rivalidade interna e de predominância de uns sobre os outros nos jornais Não sabemos com precisão o período em que Abramo deu este depoimento. Acreditamos que ele esteja no conjunto de entrevistas dadas pelo jornalista a Luiz Egyto, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, entre março e maio de 1986. Cláudio Abramo, op. cit., p. 93.
De qualquer forma, sua intervenção gerou polêmica que, como vimos, foi absorvida pelo Pasquim, tachando-o de jornalista velho e ultrapassado e interpretando o gesto como nocivo ao movimento. Por outro lado, Cláudio Abramo afirmou que diversos jornalistas e pessoas do Sindicato lhe ligaram “desesperadas”, perguntando sobre a proposta do acordo. Segundo David de Moraes,

Se os sindicatos tivessem aceitado a questão da imunidade é óbvio que a gente até podia discutir um índice menor. E eles ficam por aí dizendo que nós recusamos propostas de até 6%. Eu seria estúpido se fizesse isso. Nunca foi formalizada proposta de aumento de 6 nem de 4% por cento. Se os dois sindicatos tivessem formalizado proposta de 2%, nós poderíamos ter aceitado. E terminada a greve continuaríamos as negociações
MORAES, David de. Pasquim, 06 de junho de 1979. Ressaltamos que na entrevista dada ao semanário, o ex-presidente do SJPSP não citou nomes. A articulação entre os diversos discursos sobre as negociações foi feita por mim.



Foto Jesus Carlos
Jornalistas distribuindo material de divulgação da greve perto do Estadão.


Os jornalistas e sua greve: consciência de classe e debate político” -III

(...) Paralelamente a isso, os jornalistas tinham construído uma forma superior de organização sindical e de luta, que era o CCRR (Conselho Consultivo de Representantes de Redação). Essa relação, em termos políticos, segundo Ruy Falcão, redundou numa vanguarda sindical, reunida em torno da diretoria do SJPSP e uma massa premida pela necessidade de ganhos econômicos. Por outro lado, essa massa não acreditava na ocorrência de greves, pois o movimento seria diluído pelo conjunto dos profissionais bem-sucedidos e influentes na categoria, fosse em função do cargo, do status de alguns de reformadores do jornalismo, ou de ambos.

(...) Lia Ribeiro Dias, dirigente sindical, defendeu a condução do movimento pelo SJPSP. Afirmou que as duas reivindicações da categoria estavam bem definidas. Porém, a jornalista criticou as falas que procuram explicar o fracasso do movimento pela falta de discussões sobre as novas condições de trabalho apresentadas e o papel do profissional de imprensa. Segundo Lia,

Falou-se aqui num erro da direção, em não discutir as condições da imprensa, o papel do jornalista, que não é decisivo sem o apoio de outros setores. Foi tentado um contato com grupos desses setores e não deu resultado porque o nosso processo de organização é diferente e está mais à frente dos outros dois sindicatos. A importância de uma luta é que ela consiga ser apoiada por todas as correntes políticas que compõem a categoria. Não se conseguiu o apoio de todos os setores, não quanto aos objetivos, mas quanto ao processo. Tentou-se corrigir isso com a formação do Comando, que ao invés de conduzir com agilidade, passava horas discutindo as formas de organização com posições diferentes. As assembléias, por sua vez, discutiam apenas, se a greve continuava ou não e não como levar o movimento.




Foto Jesus Carlos

Páteo de distribuição da Folha.

“Os jornalistas e sua greve: consciência de classe e debate político” –IV


Essas visões sobre a questão da consciência de classe foram problematizadas por Bernardo Kucinski. Para ele, o fracasso da greve abriu a necessidade de se discutir o papel social do jornalista e a redefinição da profissão em termos éticos e políticos. Para Kucinski, a partir do I Congresso Nacional de Liberdade de Imprensa, realizado em outubro de 1978, passou a predominar na categoria uma visão classista. O problema é que nela os jornalistas se definiam em função do assalariamento e das condições de venda da sua força de trabalho. Essa visão foi facilitada pela conjuntura, em função da retomada das lutas sindicais pelos trabalhadores. Conforme Kucinski,


a greve mostrou os limites da visão simplesmente classista da problemática jornalística [...] quatro pessoas fazem um jornal nas condições de produção existentes hoje [...] A homogeneização da notícia, com a produção em massa, com as agência de notícias (internacionais e nacionais), com os pólos de informação, com a relativa promiscuidade ou pouca definição do campo do press-release e o campo do jornalismo, aliados à predominância da concepção sindicalista sobre as lutas da categoria, levaram a que o jornalista abdicasse da luta pelo exercício de sua função crítica na sociedade, de sua identidade como personalidade pública, permitindo o esvaziamento da categoria como categoriaA frase ilustra um tipo de visão que alguns jornalistas tinham do press-release. Para eles, este não era jornalismo, mas assessoria ou publicidade, pois não exercitava a reportagem, a ida do jornalista à rua.

Com o fracasso da greve, uma outra concepção, que via o jornalismo também como uma profissão liberal, pôde ter espaço, sem que o jornalista negasse a sua condição de trabalhador. Para Kucinski, a questão da ética jornalística residia na tensão entre essas identidades jornalísticas: a do trabalhador assalariado, a da personalidade de conhecimento público e a de operador de computador.

Através de outras análises, podemos perceber que os ativistas sindicais não souberam operar nessa tensão entre os papéis. Com a hegemonia, mesmo que temporária, de um deles, a do trabalhador assalariado, a visão classista teve o predomínio na dinâmica da ação sindical gerando problemas no papel político dos jornalistas.

Conclusão

Abrimos essa conclusão com uma pergunta: como a greve dos jornalistas pode ter prejudicado a frente ampla representada pelo MDB na luta pela democracia? A questão, porém, não é tão simples. O fim da frente ampla estava relacionado a um contexto político de reorganização do quadro partidário, no qual perdurava a crença de alguns agentes, que posteriormente se agrupariam no Partido dos Trabalhadores, no avanço do movimento popular. Assim, no final dos anos 1970, havia a perspectiva de que o confronto entre classes levaria o jornalismo a ter uma conformação semelhante à de países com estruturas sociais mais estratificadas, como certos países europeus, com um modelo de jornalismo empresarial convivendo com um jornalismo partidário.

Essa conformação, para Perseu Abramo, falando em um debate no SJPSP no fim de 1979, levaria o jornalista a combinar o seu necessário aprendizado técnico nas escolas de comunicação com o exercício da prática política na vida cotidiana. Sem essa combinação, o jornalista seria um profissional qualquer, servindo de reserva especulativa no mercado de trabalho formado pelas grandes empresas. Para ele, jornalismo e política deveriam caminhar juntos.

Essa profecia não se confirmou. Boa parte dos partidos políticos brasileiros continuou a ter uma característica de frente, com uma ideologia difusa. O movimento popular e de trabalhadores também não teve um avanço crescente e o fracasso da greve dos metalúrgicos do ABC em 1980 paralisou o fluxo das greves. Não houve, portanto a criação de uma imprensa partidária ou popular que pudesse servir de contraponto à grande imprensa. Entre as perspectivas geradas pelo movimento grevista em 1979 e a conformação que o jornalismo tomou posteriormente, há pontos obscuros que não foram identificados por esse artigo.

A outra conseqüência seria no plano político. O fim do pacto de convivência existente nas redações durante o período da ditadura teria promovido o deslocamento desse conjunto chamado imprensa de uma frente política com características de centro-esquerda para a órbita de uma democracia liberal tida como conservadora. Segundo esta concepção, antes da greve, os jornais ainda possuíam espaços de debates e de disputa de idéias que podiam ser estrategicamente aproveitados pelos jornalistas engajados na luta pela redemocratização. A greve e a represália dos patrões teriam produzido o fechamento desses espaços e prejudicado a manutenção da frente ampla.

Ora, a questão é o que cada grupo entendia por liberdade de imprensa. Para os ativistas sindicais, as demandas corporativas não eram contrárias às demandas mais gerais. Havia, nesse sentido, distintas visões entre os diversos atores sobre o que era democracia.

Entre os jornalistas de esquerda, ligados aos movimentos de oposição política à ditadura, havia duas opções que podem servir de exemplo para delinear com maior clareza as disputas naquele momento do fim dos anos 1970. Uma, gradualista, colocava na ordem de prioridades o fim do autoritarismo e a consolidação da democracia “burguesa”. Era a posição mais identificada, entre outros, com o Partido Comunista Brasileiro, que defendia a hegemonia da frente pluriclassista na condução da redemocratização. A outra entendia o processo de luta como carente de ter uma definição mais precisa em termos ideológicos e de classe. A idéia era avançar a luta dos trabalhadores para além dos limites do liberalismo político, de forma a se chegar ao socialismo. Esse era o ponto de vista dos jornalistas que depois se identificaram com o Partido dos Trabalhadores.

Assim, temos uma postura que aponta para a unidade da luta contra um inimigo comum, e outra que já não entende a questão da redemocratização desta forma. No terreno específico da greve, podemos dizer que a tentativa que dos ativistas do SJPSP para obter um padrão coletivo de conduta da categoria encontrou uma série de obstáculos. Um deles era inerente às tradições existentes no jornalismo brasileiro. A heterogeneidade de posturas ideológicas, a cultura individualista, o hábito de discutir os problemas até a exaustão, a dificuldade para encaminhar soluções de consenso e a capacidade para transformar critérios de natureza política em padrões de julgamento e comportamento moral eram barreiras à adoção de uma postura que pudesse ser lida como de classe.

Vimos que entre esses fatores dispersivos residia a dificuldade operacional do Comando de Greve de compor uma frente representando todas as correntes existentes na categoria. Essas características podem ter alimentado e, ao mesmo tempo, se somado à falta de experiência dos jornalistas em lutas coletivas, identificada como um dos sintomas das dificuldades de se efetivar o CCRR.

Não vamos aqui afirmar que estes tenham sido os fatores fundamentais para a derrota do movimento de 1979. Eles se juntaram a outros de ordem estrutural, como a dificuldade de paralisar totalmente a produção. O avanço tecnológico e técnico exigia uma mão-de-obra pequena e qualificada, em termos operacionais, para produzir os jornais, ainda que com precariedade de informações. O avanço nas relações comerciais permitia, por outro lado, o tratamento das informações como negócio. Assim, jornais e agências noticiosas de outros estados forneceram matéria-prima para os órgãos de imprensa de São Paulo circularem durante a greve. Como os principais jornais de São Paulo já tinham uma dimensão e prestígios nacionais, o prejuízo maior era em relação ao noticiário local.

Essas características das empresas jornalísticas apontavam para três estratégias de greve: 1) uma, impedir de qualquer jeito a circulação dos produtos, com a ação calcada nos piquetes; 2) outra, a adoção de procedimentos conjuntos com os gráficos e funcionários do setor administrativo para a garantir a paralisação da parte industrial; 3) a greve de desgaste, de longa duração, capaz de impor prejuízos pela perda de anunciantes e a diminuição gradativa das vendas em banca.

A ação incisiva nos piquetes esbarrou em elementos da conjuntura política. Não é difícil imaginar donos de jornais pedindo a repressão policial para garantir a circulação dos jornais. Os piquetes eram um dos elementos fundamentais da luta. Tanto que eles se concentraram em frente aos principais jornais de São Paulo, a Folha e O Estado. Impedir a circulação desses dois jornais teria efeitos positivos sobre a greve. Porém, as estratégias empresariais deram certo e esses jornais circularam. O único meio de impedir que isso acontecesse seria a total paralisação dos profissionais dessas empresas, ou uma ação mais incisiva e radical, com atos de sabotagem.

A greve conjunta, por outro lado, necessitaria de um trabalho de longo prazo para aproximar categorias tão distintas quanto jornalistas e gráficos. Num dos depoimentos (Lia Ribeiro) alegou-se haver distintos graus de mobilizações entre as categorias. Por último, a greve de desgaste, para ter sucesso, exigiria um padrão homogêneo de organização para uma greve de longa duração e com o nível de divergência existente entre as vanguardas da categoria, isso seria impossível. Também é possível pensar que o julgamento da Justiça do Trabalho tenha levado a greve a um beco sem saída.

Será que essas dificuldades não foram percebidas? Olhando a conjuntura política do fim dos anos 1970, verificamos, então, haver uma polarização política que não só opunha as diversas categorias de trabalhadores ao governo militar, mas, também criava antagonismos dentro da própria oposição ao regime. Além disso, havia um esforço de algumas lideranças de romper com um padrão de análise que taxava os trabalhadores como submissos a qualquer arranjo populista. E um dos instrumentos para se livrar dessa imagem pejorativa era: fazer greve. Era essa estratégia que dava prestígio às lideranças no campo sindical. Por que os jornalistas se distanciariam dessa estratégia? Além disso, podemos perguntar: até que ponto o exercício da reportagem e cobertura de greves do ABC, naquele período, serviu como elemento de identificação de jornalistas comuns com as demais categorias de trabalhadores? O problema era como criar uma tradição de luta entre os jornalistas superando uma herança cultural que privilegiava a disputa, a inserção política e a polêmica, valores opostos à construção de uma identidade de classe.




Greves 1979


Por Branca Ferrari




Foto Jesus Carlos

Piquete da polícia militar no portão do Estadão




















Branca Ferrari, valorosa gaúcha, fazia parte da diretoria do Sindicato dos Jornalistas na gestão David de Moraes, era membro do Conselho que aprovava propostas de sindicalização.Também foi juíza classista, durante dois anos representou o Sindicato como vogal dos empregados na Justiça do Trabalho. Segundo ela conta, “cargo bem desmoralizado na época por causa dos sindicatos pelegos. Acho que atuei corretamente na função. O advogado Walter Uzzo deve se lembrar disso porque, aparecia de vez em quando na Junta da JT em que eu trabalhava. É uma longa e kafkiana história de como fui escolhida como suplente na chapa para Vogal no Sindicato o titular, mais tarde, abdicou, e depois como, surpreendentemente, o Sindicato foi escolhido e chamado pelo Tribunal Regional do Trabalho a enviar o seu vogal eleito para a 28 Junta. E aí eu acabei indo parar na Justiça do Trabalho onde nunca entrara na vida. É uma conversa para boteco, porque é hilária. Mas foi uma experiência e tanto naquele período. O que não se fazia pelo Sindicato, não é mesmo?”

Esta prática que a Branca relata era inédita no mundo trabalhista: não existia eleição para vogal, a pelegada indicava quem queria e o trabalhador nunca era bem representado nas contendas. Branca fez um excelente trabalho, pois é boa de briga, íntegra e coerente com suas idéias, que continuam as mesmas.

Acho que hoje as coisas, infelizmente, devem ter voltado ao que era antes. O Sindicato dos Jornalistas, na gestão Davi de Moraes, inovou também nesse quesito.



Greves 1979


Aquele foi o ano. Jamais será esquecido. Será? Greves varreram o país de Norte a Sul no rastilho de pólvora aceso pelos metalúrgicos do ABC paulista, abrindo caminho na marra para a democracia que viria pouco tempo depois. Cerca de 3,3 milhões de trabalhadores cruzaram os braços em 1979. Até os coveiros fizeram greve. É. Acredite.

E jornalistas de São Paulo, claro.

Pouco antes dos jornalistas de São Paulo decretarem sua greve, um fato importante ocorreu no Sindicato da Rua Rego Freitas, sede de históricos eventos em prol do progresso e da democracia, naquele período. Reunira-se ali um grupo de representantes de vários sindicatos, entre os quais o nosso, para escrever uma carta aberta aos metalúrgicos do ABC então em greve. A mão de chumbo da repressão descera com todo o seu peso sobre os sindicatos da região e sobre seus dirigentes, entre os quais, Lula. Mas os grevistas continuavam ocupando as ruas esperando orientações para o movimento. Para mantê-los informados e mobilizados, o comando de greve decidira ler em público uma carta aberta para que os grevistas continuassem firmes. Naturalmente, recaiu sobre o Sindicato dos Jornalistas a tarefa de providenciar a reunião para isso. E lá se encontraram na Rego Freitas, ao redor da mesa da diretoria, umas 20 pessoas. Parte delas jornalistas. Os debates sobre o que dizer na carta se arrastavam, uns sugeriam uma coisa, outros coisa contrária e por aí afora. De repente, o dirigente sindical Arnaldo, que representava os metalúrgicos e se mantivera quieto até então, tranquilamente pediu a palavra e, como sugestão de texto, começou a ditar uma carta objetiva, direta, combativa. E curta. Foi o texto aprovado.

Aquele episódio, que testemunhei por mero acaso, me deixou pensativa. Se jornalistas não conseguiam a necessária objetividade e unanimidade para sugerir uma carta combativa dirigida a grevistas num momento de grande tensão, conseguiriam eles fazer uma greve? Teriam o necessário desprendimento para isso? O necessário afastamento de seus compromissos com os patrões, vistos sempre como compreensivos, como amigos, quase como colegas? Jornalista nunca se sentiu um trabalhador explorado como os demais assalariados. Sempre se viu como parte de uma elite privilegiada, mesmo se assalariado, que sempre é um ser humano explorado, temos de reconhecer.

Bom, a greve foi decretada. Profissionais que trabalhavam em jornais, revistas, rádios, TVs fizeram a sua greve com combatividade e desprendimento. Durou pouco, é verdade. E não levou nada por uma série de razões. Inclusive, por total inexperiência neste tipo de ação de reivindicação direta de direitos que implica riscos para quem trabalha. Porém, os jornalistas comprometidos com o mundo do trabalho e não com a elite da mídia estavam lá, liderados pelo David de Moraes, então presidente do Sindicato.

A greve foi isso: um divisor entre os que viviam de salário nas redações e tinham clareza disso sem ilusões e os que viviam de salários nas redações, mas achavam que partilhavam da mesa farta dos patrões sem outra vantagem que o mero afago que eles costumam fazer na cabeça de seus cães fiéis. O Sindicato dos Jornalistas, hoje, infelizmente, se alinhou a esta categoria de profissionais.



Quinta-coluna em ação


Por Vicente Alessi,filho




Jesus Carlos/Imagemlatina
Redação na Foha de São Paulo no primeiro dia da greve às 16h30.

Até hoje há quem acredite que chacoalhavam os confessionários da igreja da Consolação durante os debates da primeira assembléia de nossa greve de 1979. Não, não chacoalhavam. Até hoje há quem acredite que, pelas perdas, jamais deveria ter sido decretada: seríamos fracos, seríamos massacrados, ponto de vista jogado em alguma lata de lixo por sensível constatação de Geraldo Mayrink: “Perdeu-se alguma coisa, sim. Mas ganhou-se vergonha na cara”. E há quem acredite, até hoje, que não tivemos nossa quinta-coluna.
Pois tivemos, sim. E não foram aqueles que trabalharam e ajudaram a fazer circular jornais e revistas por não concordar com a greve – estes tinham outra opinião, não outra intenção.
Na condição de, na época, militante sindicalista de base certamente não sou o mais indicado para tratar do assunto quinta-coluna. Há gente mais qualificada, como David de Moraes, José Eduardo de Faro Freire, Francisco Wianey Pinheiro. Lia Ribeiro Dias. Perseu Abramo, se estivesse vivo. Eles e alguns outros, integrantes do Comando de Greve, viveram, naqueles dias, exatamente no olho do furacão. Mas nunca se dispuseram a redigir o Livro Negro da Greve de 1979. David sempre me fala em concórdia – uma concórdia que não tenho e que tanto me admira nele, companheiro de tantas situações.
Tantos anos passados pode me falhar alguma cronologia dos fatos. Mas jamais me faltará a repulsa por grupo político que, depois de defender com ardor a criação dos CCRR, os Conselhos de Redação, e de incentivar a greve, abandonou-a imediatamente após a sua decretação.
Animar o sentimento de greve e imediatamente deixá-la à própria sorte foi tática daquele grupo político. Ou seja: a quinta-coluna aconteceu de caso pensado. O caso foi urdido dias antes da assembléia de decretação da greve.
Por aqueles dias, antes da primeira assembléia, encontrei-me, naquele conhecido boteco sujo vizinho à sede do Sindicato, com amigo recente, jornalista quase que recém-chegado do Rio, tido como muito próximo daquele grupo político. Tornamo-nos amigos durante algumas reuniões de trabalho sindical, e notava nele, hoje também morto, o distanciamento de posições típicas daquele grupo. No boteco chamou-me a um canto menos barulhento e garantiu: “A greve corre risco pois os caras já roeram a corda. Fique de olho”.
Não contou mais do que isso apesar da insistência. Comentei a, digamos, profecia, com alguns companheiros e decidimos ficar de olho. A verdade é que, durante as assembléias, chamou muito nossa atenção a força com que pessoas identificadas com o tal grupo defendiam a greve.
E a greve foi decretada. O comando reuniu-se para distribuir tarefas. Era necessário, por exemplo, identificar companheiros com alguma capacidade de organização que se responsabilizassem pela coordenação de tantos piquetes diante da sede das empresas. E companheiros que se dispusessem a integrar esses piquetes. A mim foi proposto que ficasse na sede do Sindicato, cumprindo tarefas internas e pronto para as eventualidades.
No primeiro dia de greve soa o telefone em casa, coisa de 10h30. Lia informava a primeira eventualidade. Eu deveria seguir para a porta do DCI, na Moóca: o coordenador daquele piquete telefonara anunciando forte gripe e a impossibilidade de cumprir sua tarefa. À noite, já de volta à sede do Sindicato, soube de alguns outros casos semelhantes.
Tratei de identificar o coordenador do piquete diante do DCI. Quando consultei a relação de trabalhos elaborada pelo Comando de Greve encontrei o nome de um bom amigo, cuja amizade preservo até hoje. Ligado àquela força política.
Telefonei para ele. Ocupado, ocupado. Fui até sua casa e o encontro lá, telefone fora do gancho, nenhum sinal de gripe. Minha fúria era óbvia. Pediu que me sentasse e contou a história: ele e alguns outros receberam duas ordens: apresentarem-se para coordenar piquetes e jamais aparecerem no piquete, numa ação coordenada visando ao enfraquecimento da greve.
Certamente há outras histórias semelhantes. Acredito que devam ser resgatadas por quem as viveu para fins pedagógicos: para que se conheça a verdade e para que pensemos muito bem antes de incensar quem não merece.
Vicente Alessi Filho é jornalista profissional, diplomado com a turma de 1975 da Faculdade de Comunicação Cásper Líbero. Tem a matrícula sindical 4 874, de agosto de 1975. É o diretor de redação da revista AutoData.


David (de Moraes) e sua grandeza de David (de Michelangelo)


Por Vicente Alessi, filho






Foto Jesus Carlos

Piquete na porta da Folha de S. Paulo.

(Nota da blogueira: Os dois artigos de Vicente Alessi, filho - este e o que segue-foram os únicos legíveis na edição especial do Unidade sobre a greve)





Há jornalistas que foram justiçados com rigor como conseqüência da greve de 1979, principalmente pelo seu tão óbvio, e incondicional, alinhamento aos patrões. David de Moraes, nosso presidente naqueles dias, não é um desses. A palavra que se aplica a ele é outra: injustiçado. Sacanamente injustiçado. Chamado de Jim Jones entredentes nos desvãos das escadas por gente sem coragem para qualificá-lo pessoalmente. E por gente que, por outras razões, queria ver sua gestão navegar no descrédito.

Ao longo desses anos todos a greve de 1979 foi quase que um tabu para ele, sofrimento visível – um sofrimento que remete à grandeza de outro David, aquele de Michelangelo exposto na Galleria degli Uffizi, em Florença.

Creditam ao tipo de democracia que ele sempre levou consigo, e à gestão compartilhada de sua diretoria, o pulso que faltou para que a greve, enfim, não fosse decretada. Ele ouviu de tudo, desde ser democratista inconseqüente até não passar de mais um irresponsável.

Como nosso presidente David foi até as últimas conseqüências para exercer o cargo para o qual o elegemos, primeiro em convenção cheia de nuanças e de pequenas traições e, depois, na própria eleição. Foi irrepreensível, de acordo com seu discurso de posse, cuja síntese pode ser algo parecido com aqui-todos-são-ouvidos. Com ele presidente passamos a exercitar essa prática que parecia fora de moda: ser ouvidos.

Como nosso presidente David até poderia considerar que aquele talvez não fosse o momento para que a greve fosse decretada. Mas poucos conhecem as situações de quase humilhação que o patronato armou tendo-o como ator – não aceitou nenhuma cena preparada, e sempre nos representou com íntegra dignidade. O que nem sempre acontece no meio sindical.

Das tarefas de um presidente de sindicato não consta a de ser contrário à opinião, e ao voto, da maioria. David sempre acatou as decisões, votadas em reuniões de diretoria e nas assembléias, assim como boa parte de todos nós, mesmo divergindo. Não seria diferente com a greve.

Mesmo porque David sempre foi muito parecido com ele próprio: é cidadão, e jornalista, de princípios.


Vicente Alessi Filho é jornalista profissional, diplomado com a turma de 1975 da Faculdade de Comunicação Cásper Líbero. Tem a matrícula sindical 4 874, de agosto de 1975. É o diretor de redação da revista AutoData.

No Rio de Janeiro:

A greve abortada



Victor Passos


No início de 1979, nós, jornalistas cariocas acreditávamos que iríamos deflagrar uma greve por melhores salários. Nosso dissídio era em fevereiro e no dia 31 de janeiro realizamos a maior assembléia da categoria até então. Cerca de dois mil coleguinhas lotaram o auditório da ABI no centro do Rio, a maioria deles na esperança de aprovar a proposta das redações: greve. Mas no final da longa e tumultuada sessão (teve gente que quase saiu na porrada) foi aprovado apenas um frustrante “estado de greve” que significava, absolutamente, nada!

A responsabilidade por tal inócuo resultado foi do pessoal do partidão (Partido Comunista Brasileiro) encastelado na direção do nosso sindicato e em postos de chefia nas redações. A eles não interessava greve. Politicamente tachavam-na de inoportuna, não é o momento e tal, aquele velho papo. Além disso, muitos deles, caso a parede fosse deflagrada, teriam que furá-la para, acima de tudo, manter os polpudos contracheques dos cargos de confiança que ocupavam.

Para relembrar essa história é preciso recuar até 78, quando os jornalistas do Rio conseguiram apear da presidência do sindicato o pelego José Machado, que reinava absoluto então há 12 anos. A chapa Unidade e Ação, chefiada por Carlos Alberto de Oliveira, o Cao, Argemiro Ferreira e outros era composta de representantes das diversas redações, mas controlada pelo pessoal da “igrejinha”.

Os representantes do Jornal do Brasil na diretoria eleita eram Fritz Utzeri, da Geral, e Graça Monteiro, da Economia. No fim de 78 e início de 79, a redação do JB, onde eu estava então, como repórter da Geral, era a mais mobilizada na época. Na Economia, por exemplo, além da Graça, lembro-me com carinho das “aguerridas” Ângela Santangelo, Teresinha Costa e Ana Lúcia Magalhães. Na Geral, Zé Luiz, Lima de Amorim, eu e outros.

O nosso dissídio se aproximava e a proposta a ser levada para a assembléia geral seria tirada em assembléias por redação. Coube ao JB fazer a primeira. Não desperdiçamos a oportunidade e aprovamos a proposta de greve. No dia seguinte, corremos para o sindicato e fizemos a edição do boletim Voz da Unidade, que seria distribuído à tarde nas redações: “JB propõe greve”.

Foi como um rastilho de pólvora. No dia seguinte, novo boletim: “O Globo reafirma: greve”.Depois, “UH vai à greve” e assim por diante. A categoria estava devidamente mobilizada e marchava em direção à paralisação. Os patrões estavam preocupados com tal possibilidade e já preparavam medidas para enfrentá-la.
Do nosso lado também existiam preocupações. Era preciso estabelecer contatos e conseguir apoio das sucursais, principalmente as de Brasília e São Paulo. A diretoria do Sindicato, salvo honrosas exceções, não movia uma palha sequer. Soubemos que o enviado a São Paulo para estabelecer contato, simplesmente deixou sobre uma mesa do sindicato da Rego Freitas alguns exemplares do Voz da Unidade e voltou pro Rio sem falar com ninguém.

Ricardo Gontijo era um dos poucos diretores do sindicato daqui em quem confiávamos e, a nosso pedido, resolveu nos ajudar, indo ele mesmo a São Paulo para estabelecer contato com os coleguinhas. Insisti que procurasse minha amiga, a Beth Lorenzotti. O encontro dos dois rendeu depois, na assembléia geral, o nosso melhor momento. Por inexperiência e falta de organização, não soubemos aproveitar.
A “congregação”, o partidão, também tomou suas providências e distribuiu seu pessoal pelo auditório lotado no dia 31 de janeiro de 1979, um sábado.Seus oradores inscritos falavam para embananar a sessão, como Milton Temer, que agradecia a presença de todos e falava do seu exílio (voluntário), como se todos estivessem ali por sua causa.

O nosso melhor momento chegou quando os representantes das sucursais do JB e do Globo em São Paulo subiram ao palco, onde estava instalada a mesa e declararam: “Se o JB no Rio parar, São Paulo pára”. “Se o Globo no Rio parar, São Paulo pára”. O auditório da ABI veio abaixo em aplausos. Era hora de encaminhar a votação da proposta de greve para aproveitar o momento o nosso favor.
Mas vacilamos e a “congregação mariana” que presidia a mesa foi passando a palavra ao seu pessoal estrategicamente distribuído, que com suas intervenções e questões de ordem, umas atrás das outras, foi esfriando a assembléia e virando a decisão final para um ridículo estado de greve. Para nós do JB, a redação mais mobilizada, restou, além da frustração, o epílogo do episódio. Meses depois, o jornal demitia 22 de sua redação, eu e os coleguinhas grevistas (ou carbonários como éramos chamados) entre eles.
Cuidado com as trevas ou

A verdadeira história da Greve dos Jornalistas de 1979




Perseu Abramo discursa na assembléia do Tuca, 22 de maio de 1979, que decretou a greve. À sua direta, em pé, de camisa escura, David de Moraes, presidente do Sindicato, e ao seu lado, Francisco Wianey Pinheiro, da diretoria.


A verdade emerge", disse o então editor do Washington Post na época do escândalo de Watergate. Trinta anos depois da greve dos jornalistas de maio de 1979, o mundo mudou, mudou a profissão, mudou a tecnologia.
Mas a História permanece e deve ser contada. Vivemos tempos em que alguns se sentem no direito de reescrever a História ao seu modo, para contemplar interesses escusos.
Foi o que ocorreu com uma edição especial do jornal Unidade, do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, inexplicavelmente lançada em março, durante a eleição que, por 653 votos a 515, deu vitória ao presidente da chapa de situação.
Um universo de votantes de 1.168 jornalistas em todo o Estado dá bem a dimensão de a quantas anda o sindicalismo: a assembléia que decretou a greve, em 22 de maio de 1979, no Tuca, teve a participação de 1.692 jornalistas...
A edição especial do Unidade não entrevistou o então presidente David de Moraes, nem sua diretoria. David foi contatado por telefone por uma pessoa que não entendia o que ele dizia, ele indicou que o repórter consultasse suas declarações ao longo dos anos no próprio Unidade. O que não foi feito.
Mas conseguiram entrevistar os donos de jornais - Folha e Estado, inaugurando no Sindicato dos Jornalistas uma era da modernidade líquida, em que patrões são ouvidos sobre movimentos paredistas, mas não a diretoria eleita pelos trabalhadores.

Entretanto, aqui vamos contar a verdadeira história daquela greve, na gestão da diretoria de um sindicato de contribuição fundamental no processo de redemocratização do país. Não é a "nossa" História, são as nossas concepções sobre o que vimos e vivemos na greve.

Lembrem-se: estávamos numa ditadura. O general Figueiredo - aquele do princípio gentil do “prendo e arrebento” - substituíra o general Geisel em 15 de março de 1979.
A diretoria da gestão David de Moraes havia sido eleita depois de passarmos pelo terror dos assassinatos de Herzog, a 25 de outubro de 1975, e do operário Manoel Fiel Filho em 17 de janeiro de 1976, ambos torturados e mortos em celas do Doi-Codi e , segundo o regime, suicidas.
No mesmo ano da greve, em outubro de 1979, o líder da Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo, Santo Dias da Silva foi assassinado por um policial militar durante um piquete em Santo Amaro, zona sul de São Paulo.
Além de um movimento trabalhista, tratava-se de uma greve política, em meio a greves de metalúrgicos, bancários, enfim, das categorias mais organizadas do movimento sindical de então.

Eu fiz parte da mesa das assembléias da greve, como secretária do presidente Quartim de Moraes, ao lado do vice-presidente Augusto Nunes e da secretaria Lucila Camargo.
Também participei dos piquetes, da rádio ZYCCRR (Conselho Consultivo de Representantes de Redação), que com megafones informava e divertia os piqueteiros, vivi as dores e agruras daqueles dias agitados. Mas cheios de vibração, de vida, de ideais.
Não consigo me lembrar de muita coisa agora, prefiro louvar meus bravos companheiros, especialmente David de Moraes, que pagou um preço muito alto por sua integridade e retidão e se tornou um exemplo para todos nós.
Mas por tudo se paga um preço, a vida tem me ensinado: pela coragem ou pela covardia, pela espinha ereta ou pela genuflexão, pela ética ou a falta dela, pela omissão ou a participação, por sua alma vendida ou por não ter preço.
É preferível pagar o alto preço da integridade e dormir em paz.

É em homenagem ao querido David, e a todos os bravos companheiros que enfrentaram aquela barra tão pesada de 1979, e a razzia que se seguiu – muitos ficaram anos sem conseguir emprego, outros nunca mais puderam voltar às grandes redações - que será contada aqui a história daqueles dias de maio.