segunda-feira, abril 24, 2006

Caio Fernando Abreu- 1

Acabo de ver na TV Cultura uma linda pequena matéria sobre ele, no programa Entrelinhas. Todos os que gostávamos de literatura e vivemos na ditadura conhecemos Caio Fernando Abreu. Principalmente pelo livro de contos Morangos Mofados, de 1982, que marcou a nossa geração.Eu o vejo, bem magro, em Porto Alegre (era gaúcho) onde foi morar, no fim, e onde morreu aos 47 anos. Diz que, se não fosse escritor, gostaria de ser jardineiro. E que plantou no seu jardim duas roseiras, uma de rosas vermelhas, Odete, em homenagem a Odete Lara, e outra, brancas, a Ligia Fagundes Telles. Amava as mulheres, especialmente as que faziam arte. Me ocorre, também, que os homossexuais, esse paradoxo, em geral amam muito as mulheres, tudo o que eles queriam ser...

Caio Fernando Abreu-2

O programa também reprisou um Roda Viva de 1991, com Rachel de Queiroz. Caio é um dos entrevistadores e diz algo que nunca se viu qualquer entrevistador fazer nesse programa, em geral laudatório. Ele diz: "Eu me sinto constrangido de estar aqui, e não quero ser constrangedor. Sinto-me constrangido por estar aqui para louvar uma pessoa da qual eu absolutamente discordo e que representa coisas que eu não prezo". Mais ou menos isso. Rachel foi comunista na juventude, tempos de " O Quinze", e mais tarde apoiou a ditadura. Foi interrompido abruptamente pelo mediador, o jornalista Jorge Escosteguy, que falou algo do tipo: você está aqui para fazer perguntas. E Caio: " Não vou fazer pergunta". Rachel, então, respondeu que vivemos em uma democracia e ela esperava que ele respeitasse suas posições. Caio falou que respeitava, sim. Então, ficou gravada para sempre a coerência desse homem, desse escritor corajoso -- porque ninguém da confraria intelectual cabocla jamais agiria assim. Ficou gravada a censura do jornalista, interrompendo a fala democrática de um participante do programa. Quanto à resposta da escritora, não tenho reparos a fazer.
Todos os três já estão mortos.

Caio e as pequenas epifanias


Esta crônica publicada no Estadão em 22 de abril de 1986 foi copiada, xerocada, passada de mão em mão. Hoje habita a internet. É uma das mais belas, delicadas e singelas da crônica brasileira, esse estilo tão nosso, tão singular deste país. Uma pérola.

Pequenas epifanias

"Dois ou três almoços, uns silêncios.Fragmentos disso que chamamos de “minha vida”. Há alguns dias, Deus – ou isso que chamamos assim, tão descuidadamente, de Deus –, enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de amor. Ou disso que chamamos, também com descuido e alguma pressa, de amor. E você sabe a que me refiro.Antes que pudesse me assustar e, depois do susto, hesitar entre ir ou não ir, querer ou não querer – eu já estava lá dentro. E estar dentro daquilo era bom. Não me entenda mal – não aconteceu qualquer intimidade dessas que você certamente imagina. Na verdade, não aconteceu quase nada. Dois ou três almoços, uns silêncios. Fragmentos disso que chamamos, com aquele mesmo descuido, de “minha vida”. Outros fragmentos, daquela “outra vida”. De repente cruzadas ali, por puro mistério, sobre as toalhas brancas e os copos de vinho ou água, entre casquinhas de pão e cinzeiros cheios que os garçons rapidamente esvaziavam para que nos sentíssemos limpos. E nos sentíamos.Por trás do que acontecia, eu redescobria magias sem susto algum. E de repente me sentia protegido, você sabe como: a vida toda, esses pedacinhos desconexos, se armavam de outro jeito, fazendo sentido. Nada de mal me aconteceria, tinha certeza, enquanto estivesse dentro do campo magnético daquela outra pessoa. Os olhos da outra pessoa me olhavam e me reconheciam como outra pessoa, e suavemente faziam perguntas, investigavam terrenos: ah você não come açúcar, ah você não bebe uísque, ah você é do signo de Libra. Traçando esboços, os dois. Tateando traços difusos, vagas promessas.Nunca mais sair do centro daquele espaço para as duras ruas anônimas. Nunca mais sair daquele colo quente que é ter uma face para outra pessoa que também tem uma face para você, no meio da tralha desimportante e sem rosto de cada dia atravancando o coração. Mas no quarto, quinto dia, um trecho obsessivo do conto de Clarice Lispector – Tentação – na cabeça estonteada de encanto: “Mas ambos estavam comprometidos. Ele, com sua natureza aprisionada. Ela, com sua infância impossível”. Cito de memória, não sei se correto. Fala no encontro de uma menina ruiva, sentada num degrau às três da tarde, com um cão basset também ruivo, que passa acorrentado. Ele pára. Os dois se olham. Cintilam, prometidos. A dona o puxa. Ele se vai. E nada acontece.De mais a mais, eu não queria. Seria preciso forjar climas, insinuar convites, servir vinhos, acender velas, fazer caras. Para talvez ouvir não. A não ser que soprasse tanto vento que velejasse por si. Não velejou. Além disso, sem perceber, eu estava dentro da aprendizagem solitária do não-pedir. Só compreendi dias depois, quando um amigo me falou – descuidado, também – em pequenas epifanias. Miudinhas, quase pífias revelações de Deus feito jóias encravadas no dia-a-dia.Era isso – aquela outra vida, inesperadamente misturada à minha, olhando a minha opaca vida com os mesmos olhos atentos com que eu a olhava: uma pequena epifania. Em seguida vieram o tempo, a distância, a poeira soprando. Mas eu trouxe de lá a memória de qualquer coisa macia que tem me alimentado nestes dias seguintes de ausência e fome. Sobretudo à noite, aos domingos. Recuperei um jeito de fumar olhando para trás das janelas, vendo o que ninguém veria.Atrás das janelas, retomo esse momento de mel e sangue que Deus colocou tão rápido, e com tanta delicadeza, frente aos meus olhos há tanto tempo incapazes de ver: uma possibilidade de amor. Curvo a cabeça, agradecido. E se estendo a mão, no meio da poeira de dentro de mim, posso tocar também em outra coisa. Essa pequena epifania. Com corpo e face. Que reponho devagar, traço a traço, quando estou só e tenho medo. Sorrio, então. E quase paro de sentir fome.