sábado, maio 09, 2009




Foto Jesus Carlos

Páteo de distribuição da Folha.

“Os jornalistas e sua greve: consciência de classe e debate político” –IV


Essas visões sobre a questão da consciência de classe foram problematizadas por Bernardo Kucinski. Para ele, o fracasso da greve abriu a necessidade de se discutir o papel social do jornalista e a redefinição da profissão em termos éticos e políticos. Para Kucinski, a partir do I Congresso Nacional de Liberdade de Imprensa, realizado em outubro de 1978, passou a predominar na categoria uma visão classista. O problema é que nela os jornalistas se definiam em função do assalariamento e das condições de venda da sua força de trabalho. Essa visão foi facilitada pela conjuntura, em função da retomada das lutas sindicais pelos trabalhadores. Conforme Kucinski,


a greve mostrou os limites da visão simplesmente classista da problemática jornalística [...] quatro pessoas fazem um jornal nas condições de produção existentes hoje [...] A homogeneização da notícia, com a produção em massa, com as agência de notícias (internacionais e nacionais), com os pólos de informação, com a relativa promiscuidade ou pouca definição do campo do press-release e o campo do jornalismo, aliados à predominância da concepção sindicalista sobre as lutas da categoria, levaram a que o jornalista abdicasse da luta pelo exercício de sua função crítica na sociedade, de sua identidade como personalidade pública, permitindo o esvaziamento da categoria como categoriaA frase ilustra um tipo de visão que alguns jornalistas tinham do press-release. Para eles, este não era jornalismo, mas assessoria ou publicidade, pois não exercitava a reportagem, a ida do jornalista à rua.

Com o fracasso da greve, uma outra concepção, que via o jornalismo também como uma profissão liberal, pôde ter espaço, sem que o jornalista negasse a sua condição de trabalhador. Para Kucinski, a questão da ética jornalística residia na tensão entre essas identidades jornalísticas: a do trabalhador assalariado, a da personalidade de conhecimento público e a de operador de computador.

Através de outras análises, podemos perceber que os ativistas sindicais não souberam operar nessa tensão entre os papéis. Com a hegemonia, mesmo que temporária, de um deles, a do trabalhador assalariado, a visão classista teve o predomínio na dinâmica da ação sindical gerando problemas no papel político dos jornalistas.

Conclusão

Abrimos essa conclusão com uma pergunta: como a greve dos jornalistas pode ter prejudicado a frente ampla representada pelo MDB na luta pela democracia? A questão, porém, não é tão simples. O fim da frente ampla estava relacionado a um contexto político de reorganização do quadro partidário, no qual perdurava a crença de alguns agentes, que posteriormente se agrupariam no Partido dos Trabalhadores, no avanço do movimento popular. Assim, no final dos anos 1970, havia a perspectiva de que o confronto entre classes levaria o jornalismo a ter uma conformação semelhante à de países com estruturas sociais mais estratificadas, como certos países europeus, com um modelo de jornalismo empresarial convivendo com um jornalismo partidário.

Essa conformação, para Perseu Abramo, falando em um debate no SJPSP no fim de 1979, levaria o jornalista a combinar o seu necessário aprendizado técnico nas escolas de comunicação com o exercício da prática política na vida cotidiana. Sem essa combinação, o jornalista seria um profissional qualquer, servindo de reserva especulativa no mercado de trabalho formado pelas grandes empresas. Para ele, jornalismo e política deveriam caminhar juntos.

Essa profecia não se confirmou. Boa parte dos partidos políticos brasileiros continuou a ter uma característica de frente, com uma ideologia difusa. O movimento popular e de trabalhadores também não teve um avanço crescente e o fracasso da greve dos metalúrgicos do ABC em 1980 paralisou o fluxo das greves. Não houve, portanto a criação de uma imprensa partidária ou popular que pudesse servir de contraponto à grande imprensa. Entre as perspectivas geradas pelo movimento grevista em 1979 e a conformação que o jornalismo tomou posteriormente, há pontos obscuros que não foram identificados por esse artigo.

A outra conseqüência seria no plano político. O fim do pacto de convivência existente nas redações durante o período da ditadura teria promovido o deslocamento desse conjunto chamado imprensa de uma frente política com características de centro-esquerda para a órbita de uma democracia liberal tida como conservadora. Segundo esta concepção, antes da greve, os jornais ainda possuíam espaços de debates e de disputa de idéias que podiam ser estrategicamente aproveitados pelos jornalistas engajados na luta pela redemocratização. A greve e a represália dos patrões teriam produzido o fechamento desses espaços e prejudicado a manutenção da frente ampla.

Ora, a questão é o que cada grupo entendia por liberdade de imprensa. Para os ativistas sindicais, as demandas corporativas não eram contrárias às demandas mais gerais. Havia, nesse sentido, distintas visões entre os diversos atores sobre o que era democracia.

Entre os jornalistas de esquerda, ligados aos movimentos de oposição política à ditadura, havia duas opções que podem servir de exemplo para delinear com maior clareza as disputas naquele momento do fim dos anos 1970. Uma, gradualista, colocava na ordem de prioridades o fim do autoritarismo e a consolidação da democracia “burguesa”. Era a posição mais identificada, entre outros, com o Partido Comunista Brasileiro, que defendia a hegemonia da frente pluriclassista na condução da redemocratização. A outra entendia o processo de luta como carente de ter uma definição mais precisa em termos ideológicos e de classe. A idéia era avançar a luta dos trabalhadores para além dos limites do liberalismo político, de forma a se chegar ao socialismo. Esse era o ponto de vista dos jornalistas que depois se identificaram com o Partido dos Trabalhadores.

Assim, temos uma postura que aponta para a unidade da luta contra um inimigo comum, e outra que já não entende a questão da redemocratização desta forma. No terreno específico da greve, podemos dizer que a tentativa que dos ativistas do SJPSP para obter um padrão coletivo de conduta da categoria encontrou uma série de obstáculos. Um deles era inerente às tradições existentes no jornalismo brasileiro. A heterogeneidade de posturas ideológicas, a cultura individualista, o hábito de discutir os problemas até a exaustão, a dificuldade para encaminhar soluções de consenso e a capacidade para transformar critérios de natureza política em padrões de julgamento e comportamento moral eram barreiras à adoção de uma postura que pudesse ser lida como de classe.

Vimos que entre esses fatores dispersivos residia a dificuldade operacional do Comando de Greve de compor uma frente representando todas as correntes existentes na categoria. Essas características podem ter alimentado e, ao mesmo tempo, se somado à falta de experiência dos jornalistas em lutas coletivas, identificada como um dos sintomas das dificuldades de se efetivar o CCRR.

Não vamos aqui afirmar que estes tenham sido os fatores fundamentais para a derrota do movimento de 1979. Eles se juntaram a outros de ordem estrutural, como a dificuldade de paralisar totalmente a produção. O avanço tecnológico e técnico exigia uma mão-de-obra pequena e qualificada, em termos operacionais, para produzir os jornais, ainda que com precariedade de informações. O avanço nas relações comerciais permitia, por outro lado, o tratamento das informações como negócio. Assim, jornais e agências noticiosas de outros estados forneceram matéria-prima para os órgãos de imprensa de São Paulo circularem durante a greve. Como os principais jornais de São Paulo já tinham uma dimensão e prestígios nacionais, o prejuízo maior era em relação ao noticiário local.

Essas características das empresas jornalísticas apontavam para três estratégias de greve: 1) uma, impedir de qualquer jeito a circulação dos produtos, com a ação calcada nos piquetes; 2) outra, a adoção de procedimentos conjuntos com os gráficos e funcionários do setor administrativo para a garantir a paralisação da parte industrial; 3) a greve de desgaste, de longa duração, capaz de impor prejuízos pela perda de anunciantes e a diminuição gradativa das vendas em banca.

A ação incisiva nos piquetes esbarrou em elementos da conjuntura política. Não é difícil imaginar donos de jornais pedindo a repressão policial para garantir a circulação dos jornais. Os piquetes eram um dos elementos fundamentais da luta. Tanto que eles se concentraram em frente aos principais jornais de São Paulo, a Folha e O Estado. Impedir a circulação desses dois jornais teria efeitos positivos sobre a greve. Porém, as estratégias empresariais deram certo e esses jornais circularam. O único meio de impedir que isso acontecesse seria a total paralisação dos profissionais dessas empresas, ou uma ação mais incisiva e radical, com atos de sabotagem.

A greve conjunta, por outro lado, necessitaria de um trabalho de longo prazo para aproximar categorias tão distintas quanto jornalistas e gráficos. Num dos depoimentos (Lia Ribeiro) alegou-se haver distintos graus de mobilizações entre as categorias. Por último, a greve de desgaste, para ter sucesso, exigiria um padrão homogêneo de organização para uma greve de longa duração e com o nível de divergência existente entre as vanguardas da categoria, isso seria impossível. Também é possível pensar que o julgamento da Justiça do Trabalho tenha levado a greve a um beco sem saída.

Será que essas dificuldades não foram percebidas? Olhando a conjuntura política do fim dos anos 1970, verificamos, então, haver uma polarização política que não só opunha as diversas categorias de trabalhadores ao governo militar, mas, também criava antagonismos dentro da própria oposição ao regime. Além disso, havia um esforço de algumas lideranças de romper com um padrão de análise que taxava os trabalhadores como submissos a qualquer arranjo populista. E um dos instrumentos para se livrar dessa imagem pejorativa era: fazer greve. Era essa estratégia que dava prestígio às lideranças no campo sindical. Por que os jornalistas se distanciariam dessa estratégia? Além disso, podemos perguntar: até que ponto o exercício da reportagem e cobertura de greves do ABC, naquele período, serviu como elemento de identificação de jornalistas comuns com as demais categorias de trabalhadores? O problema era como criar uma tradição de luta entre os jornalistas superando uma herança cultural que privilegiava a disputa, a inserção política e a polêmica, valores opostos à construção de uma identidade de classe.


Nenhum comentário: