Minha querida amiga Irene Incáo me mandou este excelente artigo. Irene foi música, cantora de banda punk da periferia, da Freguesia do Ó. Aquela música do Gil, a gente acha que ele fez pra essa banda, que um dia foi visitá-lo..
"Esgotados os poderes da Ciência, esgotada nossa santa paciência, eis que essa cidade é um esgoto só..."
Hoje é jornalista, das mais corretas e sérias profissionais da arte de lidar com as palavras, com essa língua nossa tão difícil. Eu sempre me aconselhei com ela, mais nova que eu, mais ponderada...Ela fazia parte da redação feliz da Editora Abril nos anos 80.
Que bom ter amigos assim! É sempre uma nova esperança que a gente alimenta de sobreviver, como diz o belo samba.Segue o artigo:
"Parece para mim que a tortura deveria ser banida, porque somos todos humanos, não?
Desculpem pela obviedade. É que a tortura nunca pára. Como diz Frank Zappa numa canção meio cínica. Eu poderia relacionar centenas de cenas sinistras que estão ao nosso redor neste momento. Mas vou poupar a todos nós.
Não vi o filme de Sérgio Rezende ainda, mas acredito que mereça mesmo tantos elogios. Tenho lido em muitos comentários um foco intenso na dor de Zuzu, na sua força, coragem e criatividade para levar em frente sua luta.
E, a despeito de não me compreenderem, isso me levou a questões que refletem o presente mais recente. A dolorosa herança do povo brasileiro, mantido em ignorância, impossibilitado de se desenvolver intelectualmente o mínimo e mantido assim no silêncio necessário à perpetuação da “ordem” .
Mais do que força e coração e gênio, Zuzu tinha recursos (foram vãos?) para confrontar a violência daquele Estado: fazia parte da pequena parcela de brasileiros que tiveram direito à educação. Por favor, não chamem a isso de escolaridade (em boa parte do mundo essas coisas não são sinônimos, embora a conveniência do poder sempre nos queira confundir acerca do assunto...)
A história de Zuzu me remete à história da urbanidade pobre construída mais intensamente desde os anos 70 ,da minha infância e adolescência. É uma história de maioria, porque o cenário é um bairro pobre da Zona Norte de São Paulo. Na época operário, cosmopolita, talvez. Globalizado, não. Comíamos macarrão húngaro no almoço e, dali a pouco, doce de feijão na quitanda com a “bachan”, de chinelinhos de pano e vestido quase aos pés. Tão exótica... e tão nossa.
Nessa urbanidade, a violência já chegava às ruas e aos bares à noite, em forma de polícia. A palavra mais próxima de violência, muito usada pelos estudantes do noturno (do antigo colegial das escolas públicas) e pelos jogadores de sinuca de fim de semana, era camburão. Nos relatos dos primos mais velhos, dos vizinhos, a violência e perversão da polícia sempre são aconchegadas no invólucro da aceitação, do conformismo diante da força absoluta do invencível e imutável. É patrimônio do pobre deseducado e ignorante – mesmo do mais sábio e sensível – o silêncio diante da presença ostensiva da polícia, da “autoridade”. Do tapa na cara, do xingamento, da humilhação.
Eu tomei conhecimento da tortura muito antes entender o papel do Estado de Direito, quando vi um jogador de dominó, freqüentador do boteco onde comprávamos pão, mostrar as marcas da tortura de uma detenção. O motivo? Jogo do bicho. Agressões e torturas em suspeitos(?) eram rotina da polícia na comunidade ao redor. Alguns morreram. Morreram porque bateram a cabeça. Porque se mataram. Outro, porque foi morto pelo colega de cela... Negros e bichas, bem mais (preciso dizer que porque eram pobres?). Porque não suportaram as torturas. As mães???? A essas mães, restaram sempre o silêncio, a incompreensão, ou a aceitação “da vontade de Deus”. Restou o silêncio. A herança dessa impotência – que a ignorância, a deseducação, a falta de recursos essenciais para interferir nessa realidade têm impingido à grande maioria dos brasileiros – está no noticiário de ontem, de hoje e, tão cedo, não será um passado histórico. Parece que o povo ainda não fez história. A triste história do golpe e da monstruosidade da tortura a presos políticos, em sua maioria estudantes bem preparados – muitos bem educados e idealistas –, não é a história da tortura de todos os dias. E, para esse grande Brasil, é só mais uma história de tortura e morte... entre tantas.
Ainda que isso possa ferir, quando deve findar a tortura que a exclusão tem condenado a tantos, por tantos anos?
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