segunda-feira, dezembro 22, 2008

Poema do Menino Jeus



Alberto Caeiro

(trecho)


Num meio-dia de fim de primavera eu tive um sonho como
uma fotografia: eu vi Jesus Cristo descer à Terra.
Ele veio pela encosta de um monte, mas era outra vez
menino, a correr e a rolar-se pela erva
A arrancar flores para deitar fora, e a rir de modo a
ouvir-se de longe.
Ele tinha fugido do céu. Era nosso demais pra
fingir-se de Segunda pessoa da Trindade.
Um dia que Deus estava dormindo e o Espírito Santo
andava a voar, Ele foi até a caixa dos milagres e
roubou três.
Com o primeiro Ele fez com que ninguém soubesse que
Ele tinha fugido; com o segundo Ele se criou
eternamente humano e menino; e com o terceiro Ele
criou um Cristo eternamente na cruz e deixou-o pregado
na cruz que há no céu e serve de modelo às outras.
Depois Ele fugiu para o Sol e desceu pelo primeiro
raio que apanhou.
Hoje Ele vive na minha aldeia, comigo. É uma criança
bonita, de riso natural.
Limpa o nariz com o braço direito, chapinha nas poças
d'água, colhe as flores, gosta delas, esquece.
Atira pedras aos burros, colhe as frutas nos pomares,
e foge a chorar e a gritar dos cães.
Só porque sabe que elas não gostam, e toda gente acha
graça, Ele corre atrás das raparigas que levam as
bilhas na cabeça e levanta-lhes a saia.
A mim, ensinou-me tudo. Ele me ensinou a olhar
para as coisas. Ele me aponta todas as cores que há
nas flores e me mostra como as pedras são engraçadas
quando a gente as tem na mão e olha devagar para
elas.
Damo-nos tão bem um com o outro na companhia de tudo
que nunca pensamos um no outro. Vivemos juntos os dois
com um acordo íntimo, como a mão direita e a esquerda.
Ao anoitecer nós brincamos as cinco pedrinhas no
degrau da porta de casa. Graves, como convém a um DEUS
e a um poeta. Como se cada pedra fosse todo o Universo
e fosse por isso um perigo muito grande deixá-la cair
no chão.
Depois eu lhe conto histórias das coisas só dos
homens. E Ele sorri, porque tudo é incrível. Ele ri
dos reis e dos que não são reis. E tem pena de ouvir
falar das guerras e dos comércios.
Depois Ele adormece e eu o levo no colo para dentro da
minha casa, deito-o na minha cama, despindo-o
lentamente, como seguindo um ritual todo humano e todo
materno até Ele estar nu.
Ele dorme dentro da minha alma. Às vezes Ele acorda de
noite, brinca com meus sonhos. Vira uns de pena pro ar,
põe uns por cima dos outros, e bate palmas, sozinho,
sorrindo para os meus sonhos.
Quando eu morrer, Filhinho, seja eu a criança, o mais
pequeno, pega-me Tu ao colo, leva-me para dentro a Tua
casa. Deita-me na tua cama. Despe o meu ser, cansado e
humano. Conta-me histórias caso eu acorde para eu
tornar a adormecer, e dá-me sonhos Teus para eu
brincar.

quinta-feira, dezembro 18, 2008

Meirelles resgata brio da classe artística

Foto Reinaldo Marques/Terra

O Terra Magazine traz uma bela notícia de fim de ano, papai noel para todos os que já estávamos tão desiludidos com a classe artística, que há muitos anos não assume posições combativas. O talentoso cineasta Fernando Meirelles (Cidade de Deus, Jardineiro Fiel, Ensaio sobre a Cegueira) recebe prêmio da Veja e o dedica ao juiz Fausto de Sanctis.
Na carta a de Sanctis, ele diz que o juiz é um paulistano que merece o troféu mais do que ele, "por sua postura e capacidade de resistir às pressões". Tapa bem dado com luva de pelica na Editora Abril, que via revista Veja tem protagonizado espetaculos de antijornalismo explicito no caso Daniel Dantas.

Beijos pro Meirelles!

Não dá mais pra ver artistas posando para publicidade de tudo: Fernanda Montenegro na Vale, nos bancos estatais, etc. Artistas de todos os quilates fazendo propaganda de bebida alcoólica e de remédios ( aliás exatamente hoje sua performance foi proibida pela Anvisa).

Paulo Autran recusava-se a fazer publicidade. Era o nosso maior ator.

Por que todos os outros são tão necessitados?
Não pensam na ética?
Na sua imagem?
Ou só pensam no Castelo de Caras?
Mirem-se no exemplo de Meirelles e ajam como cidadãos.





Claudio Leal
O cineasta Fernando Meirelles, diretor de Ensaio sobre a cegueira, realizou uma premiação particular e inabitual ao juiz da 6ª Vara Federal Criminal de São Paulo, Fausto de Sanctis, que condenou o banqueiro Daniel Dantas a 10 anos de prisão por corrupção ativa.
Vencedor do prêmio "Paulistanos do Ano 2008", da Veja São Paulo, Meirelles repassou o troféu ao magistrado por achar que havia um paulistano que merecia a homenagem mais do que ele. A notícia foi antecipada pela coluna de Mônica Bergamo, na Folha de S. Paulo desta quinta, 18. Em cima da placa, Meirelles colou um papel: "Fausto De Sanctis/ O Homem!".
Em novembro, De Sanctis recusou a promoção à vaga de desembargador do Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Permaneceu no caso Dantas e condenou o banqueiro por tentativa de suborno ao delegado Vitor Hugo Alves, da Polícia Federal.
O cineasta foi procurado por Terra Magazine, mas se encontra em Dubai, onde divulga Ensaio.









quinta-feira, dezembro 11, 2008

Do blog de José Saramago



Baltasar Garcón,


Dezembro 11, 2008 by José Saramago



Apesar do tempo agreste, com chuva a espaços e frio, o cinema estava cheio. Carmen Castillo temia que as duas horas e meia de projecção do seu documentário acabassem por fazer desanimar a assistência, mas não foi assim. Nem uma só pessoa se levantou para sair e, no final, com os espectadores rendidos à força das imagens e aos testemunhos estremecedores dos membros do M.I.R sobreviventes da ditadura, Carmen foi aplaudida de pé. Nós, os da Fundação, estávamos orgulhosos daquele público. Havia confiança, mas a realidade excedeu as previsões mais optimistas.
À hora a que escrevo, mais de duzentos mil exemplares da Declaração Universal dos Direitos Humanos circulam nas mãos de outros tantos leitores dos jornais Diário de Notícias, de Lisboa, e Jornal de Notícias, do Porto. E hoje, dia 11, será a vez de Baltasar Garzón, que vem expressamente de Madrid para falar de direitos humanos, de Chile e de Guantánamo. Tal como a homenagem às Letras Portuguesas que se realizou ao fim da tarde com grande êxito, a conferência de Garzón será na Casa do Alentejo, às 18 horas. É uma boa ocasião para aprender. Sim, para aprender.


Dezembro, 12


O juiz Baltasar Garzón deixou em Lisboa uma lição do que é ou deve ser o Direito. A verdade é que, em sentido estrito, do que se falou no acto organizado pela Fundação foi de Justiça. E de sentido comum: dos delitos que não podem ficar impunes, das vítimas a quem tem de ser dada satisfação, dos tribunais que têm de levantar alcatifas para ver o que há por baixo do horror. Porque muitas vezes, por baixo do horror, há interesses económicos, delitos claramente identificados perpetrados por pessoas e grupos concretos que não podem ser ignorados em Estados que se proclaman de direito. Quem sabe se os responsáveis dos crimes contra a humanidade, que de outra forma não posso chamar a esta crise financeira e económica internacional, não acabarão processados, como o foram Pinochet ou Videla ou outros ditadores terríveis que tanta dor espalharam? Quem sabe?
O juiz Baltasar Garzón fez-nos compreender a importância de não cair na vileza uma vez para não ficar para sempre vil. Quem conculca uma vez os direitos humanos, em Guantánamo, por exemplo, atira pela borda fora anos de direito e de legalidade. Não se pode ser cúmplice do caos internacional com que a administração Bush infectou meio mundo. Nem os governos, nem os cidadãos.
Um auditório multitudiná rio e atento seguiu as intervenções do juiz com respeito e consideração. E aplaudiu como quem ouve não verdades reveladas, mas sim a voz efectiva de que o mundo necessita para não cair em na permissividade da abjecção.
A Fundação está contente: fizemos o que pudemos para recordar que há uma Declaração de Direitos Humanos, que estes não são respeitados e que os cidadãos têm de exigir que não se tornem em letra morta. Baltasar Garzón cumpriu a sua parte e tê-lo puesto posto a claro esta tarde em Lisboa só pode fazer com que nos felicitemos.

domingo, novembro 30, 2008

Um poema antigo para Maiacóvski


Por Vladímir Maiacóvski

De Elizabeth


Vladímir voz de veludo
Carcaça gigante, eu te reverencio
Porque se passaram 66 anos
e passarão cem, e o século vai virar
e mais mil anos
e sempre ressuscitarás a cada poema
E continuarão a ler tua obra/vida
Com ou sem balalaikas
Ó delicado!
A iluminar, a brilhar
A libertar povo e poesia
Muita coisa junta para um só poeta

E a misérias do cotidiano
E os amores servis
E o deserdados do mundo
Ó delicado!
Tudo mudou
nada mudou

É preciso que tudo mude, eles dizem
Para que tudo permaneça como sempre foi

Este o slogan do século 20
(Não o seu , não o nosso)

New York, Moscou, Praga
São Paulo (Brasil, lá onde poderia existir um homem feliz)
As capitais engasgadas
Desenrolam suas misérias
Sérvio e croatas, afegãos,
e nordestinos, cucarachos e africanos
judeus, palestinos, e curdos e tantos
sangram como talvez nunca
tenha sangrado o homem

Vladímir, foi bom
foi bom que teu tempo se esgotou tão cedo
Quanto disso o poeta poderia suportar?

Resta-nos beber da tua fonte
Ó delicado!
Entoar poemas pelos bares vadios
E brilhar
Nossa vingança é brilhar
Brilhar sempre
Brilhar como o sol

sexta-feira, novembro 28, 2008

Livros, essa coisa antiga

Do Abrapalavra, do jornalista e escritor Ronaldo Antonelli:
http://ronaldoantonelli.blogspot.com/search/label/Abrapalavra

"Procurou-me uma sobrinha, na casa dos vinte anos e estudante de comunicações, perguntando pelo porão de casa, local amplo e aproveitável que uso como sala de trabalho: queria saber se lá havia ainda “aquelas estantes com livros”.
Dono de alguns milhares de livros que acumulei durante a vida, respondi que naturalmente ainda estavam lá – até pela dificuldade de sua remoção, sempre presente numa eventual perspectiva de mudança. Ela me explicou que desejava fazer uma filmagem, para um documentário que produzia como trabalho de faculdade.
Visitando o local, a sobrinha concluiu que era ideal para suas necessidades de apresentar um ambiente de “coisas antigas”, de acervo bibliográfico antiquado para introduzir a matéria sobre histórias fantásticas e de terror que constituía o tema de seu trabalho.
E veio a equipe, composta de vários jovens com tralha de equipamentos, que se mostraram admirados com a quantidade de livros e a aparência anacrônica do acervo. Com alguma discreta indagação, apurei que o que reputavam antiquado era a mera existência dos livros, reunidos em tal quantidade.
Sua matéria falava nas lendas medievais, tal como coletadas pelos irmãos Grimm, e sua busca de ambientação entre estantes vetustas tinha começado por bibliotecas públicas e sebos, mas seus pedidos tinham esbarrado na burocracia dos funcionários e na má-vontade dos comerciantes. Foi então que minha sobrinha se lembrou do porão de seu livresco tio.
Os membros da equipe fizeram seu trabalho e se foram, agradecendo-me pelo empréstimo do local. Fiquei pensando na idéia que tantos jovens atuais parecem fazer dos livros. Lembrei-me de que minha sobrinha dispõe, em sua casa, de um quarto exclusivo, com seu computador e aparelhos de áudio e vídeo, onde uns poucos livros se alojam em sua escrivaninha – aqueles estritamente utilizados no dia-a-dia escolar.

Pensei nos quartos e casas de outros jovens, incluídos amigos de meu filho mais novo, e a memória não me revelou quadro diferente. Depois me recordei de um instalador de redes, estudante de informática de nível superior, que ao visitar o porão de casa também se intrigou diante dos livros... sugerindo que “hoje o Google e a Wikipedia substituíram tudo isso, não?” Tentei argumentar que nem de longe se poderia supor tal substituição, mas logo percebi a árdua tarefa que teria pela frente.
Tremi à idéia de que estaríamos (“estaríamos” quem, cara-pálida?) repassando aos jovens a noção de que as volumosas massas de livros de papel das bibliotecas seriam “antiquadas”, ultrapassadas e... inúteis, talvez, diante das modernas tecnologias de armazenamento de textos – e, pior que isso, diante das atuais necessidades de seu uso, já não absorvido, exaustivo e mnemônico, porém imagético, salteado e acessável via cliques ou outras formas de solicitação técnica.

À idéia, enfim, de que a própria cultura se estaria rapidamente reduzindo a um recurso secundário, confinada a nichos museológicos e a cargo de especialistas excêntricos. A um exótico tema de documentário para um TCC – trabalho de conclusão de curso... quem sabe, por isso mesmo, premiado pela originalidade!

sexta-feira, novembro 21, 2008

terça-feira, novembro 18, 2008

Apenas alguns minutos . De silêncio?

Sérgio Neves/AE

Paulo Sérgio, operador da Bolsa de Mercadorias e Futuros (BM&F) tentou o suicídio com um tiro no peito esta tarde em São Paulo.

Está internado em estado grave, 36 anos, 3 ou 4 filhas - as notícias são desencontradas- corretor da Itaú. Sofre, segundo essas notícias desencontradas, de síndrome de pânico, entre outras doenças graves do desequilíbrio, tão corriqueiras hoje em dia.

Comprou uma casa a prestação.

Com a fusão entre Itaú e Unibanco, estava preocupado com a possibilidade de perder o emprego, o que vai acontecer com muitos e muitos bancários, claro como água.

Em nota, o Itaú afirmou que está dando "total assistência ao funcionário e a seus familiares". "Em profundo respeito ao ser humano, não comentaremos o fato", acrescentou o comunicado.

Quem ler sobre o movimento do dia da BM&F no Globo online, talvez não repare. Eu reparei:

" RIO - A instabilidade voltou com força no dia ao mercado financeiro, no mesmo dia em que o Japão anuinciou quadroo recessivo. A Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa) apresentou queda durante toda a manhã, passou a subir por volta das 15h, começou a variar intensamente até fechar em queda de 0,2%, aos 35.717 pontos.(...)
Além da instabilidade predominante no dia, a sessão na BM&FBovespa ainda foi marcada por um grave incidente"

E aí entra o link para o tiro no peito.

Ia reclamar e xingar, quando senti do que se tratava, não sem um arrepio.

E disse lá que , na verdade, colocar a tentativa de suicídio no meio da notícia, que começa com o movimento da Bolsa, não é erro jornalístico.

(Afinal, nenhum homem mordeu um cachorro. Um homem apenas atentou contra a vida, diriam os manuais de redação).

Os trabalhos foram paralisados na Bolsa durante o tempo necessário para a retirada do corpo, e para os operadores se recomporem.

O que é uma mera vida humana perante a roda infernal da especulação financeira nacional e internacional?

A parada não foi oficial, e o pregão eletrônico continuou firme.

Por que eu iria reclamar da forma como foi redigida a notícia pelo jornalão?

Trata-se, constatei, apenas do reflexo de como essa SOCIEDADE DOENTE BANALIZA A VIDA E A MORTE, QUANDO, SEMPRE, O QUE ESTÁ EM QUESTÃO É O DINHEIRO.

A culpa não é só do jornal.

Ela é toda nossa.

segunda-feira, novembro 17, 2008

Para corruptos e assassinos? Tudo!

Verissimo, no Terra Magazine

As Cobras do Verissimo vêm bem a propósito de duas noticias de hoje. À primeira vista podem fazer crer que a Justiça está sempre atenta e vigilante, mas...
Uma, o julgamento do juiz De Sanctis - cujo afastamento do inquérito que apura a Operação Satiagraha fora requerido pela defesa de Daniel Dantas. Por incrivel que pareça, a Justiça Federal de São Paulo decidiu pela permanência do juiz . O placar foi de dois votos a um, favoráveis ao magistrado.

Além deste, o juiz também será alvo nesta semana do julgamento de um processo administrativo pelo Conselho Nacional de Justiça, presidido pelo ministro do STF Gilmar Mendes, que tem feito o posíivel, o impossível e o incrível para livrar a barra de DD.

Este país , muito parecido com aquele relatado por Kafka em O Processo -- pemite que suspeitos de lavagem de dinheiro, formação de quadrilha e comprovadamente acusados de subornos milionários consigam virar o jogo e partir para a acusação. Um país que está sempre à frente quando se trata de livrar ricos e poderosos de suas penas.

Pois hoje também foi dia de outro julgamento: a OAB resolveu negar a sua carteirinha ao ex- jornalista Antonio Marcos Pimenta Neves, que matou a jornalista Sandra Gomide em 2000. Ele se formou em direito em 1973, quando a lei dispensou do exame da Ordem os advogados graduados até aquele ano, mas só pediu a inscrição em 2002, dois anos portanto após o crime..
Réu confesso, condenado por assassinato premeditado, Pimenta Neves está solto há anos, e ainda quer ser livre para advogar.
Em 2006, ele foi condenado em primeira e segunda instâncias. Mas aguarda em liberdade que sejam julgados todos os recursos impetrados por seus advogados, graças a uma liminar do STF.

quinta-feira, novembro 13, 2008

Guerreiros do Viaduto



Fotos Jesus Carlos



O repórter fotográfico Jesus Carlos acompanha, há mais de um ano, essa atividade sob dois viadutos em Sampa: do Café, no Bexiga, e Alcântara Machado, no Brás.

Ele diz que o boxe é um esporte considerado de baixo valor, relegado pela mídia e pelo poder público, e no projeto Garrido-Boxe, os atletas encontram espaço para desenvolver suas qualidades e especialmente, a auto-estima.
" Através da fotografía demonstro os aspectos humanos, as relações interpessoais, os combates, a vida cotidiana da comundade. 'Guerreiros do Viaduto' é minha contribuição para demonstrar, através da fotografia, a realidade do boxe e de seus atletas no Brasil.

O projeto social “Sol Nascente – Cora/Garrido” tem o objetivo de reintegração social . Entre as atividades sociais diversas do projeto, o boxe em todas as modalidades é sua maior expressão.
Implantado inicialmente sob o Viaduto do Café, também chegou ao Viaduto Alcântara Machado, no Bras.
Além do boxe, o projeto Sol Nascente abriga em suas dependências, para todos os frequentadores e a comunidade, uma biblioteca e uma academia de ginástica.
Um ensaio de Jesus Carlos sobre o tema acaba de ser publicado pelo site Foto Revista, considerado o melhor site/revista eletrônica da Argentina, voltado exclusivamente para
a área da fotografia e para os profissionais da imagem como um todo.

segunda-feira, novembro 03, 2008

Burros de carga, cachorros e homens


Recebi por e-mail, uma pessoa bem intencionada , claro, me repassou o pedido da Silvana aí embaixo. Meus comentários vão após o texto:


Olá amigos,
Acabei de receber uma ligação de um pedido de ajuda, uma denúncia.
A pessoa que ligou trabalha em uma clínica veterinária, no banho e tosa, ela disse que o irmão dela está chocado com uma cena que ele vê todos os dias, um senhor morador de rua, usa seu cachorro como burro de carga, o pobrezinho puxa a carroça dele o dia inteiro, ele o usa para carregar a carroça, imaginem o sofrimento deste pobre cachorro, mas ninguém faz nada, mesmo ele estando em uma das avenidas mais famosas e movimentadas de SP.
Esta pessoa me pediu que eu divulgasse um e-mail pedindo ajuda, para que algum órgão ou alguma pessoa possa fazer alguma coisa.
O senhor que faz esta barbaridade mora na Avenida Paulista, esquina com a Rua Augusta, em frente ao Bradesco, ele está sempre nos horários da 12:00 ou após as 18:00, a pessoa que denuncio disse se tratar de um cachorro de raça, mas não sabe informar qual a raça, já que o seu irmão não sabe nada sobre raça, bem, isto é o que menos importa, mesmo sendo um vira-lata, algo precisa ser feito.
Divulguem a todos, para que chegue a algum órgão competente.
Deus abençoe-os!
Silvana


E ninguém pensou no seguinte:
se o "senhor morador de rua" estivesse ele próprio puxando a carroça, como "burro de carga", será que alguém pediria ajuda? Acharia uma "barbaridade?"
Não,afinal já se tornaram paisagem costumeira e banalizada das grandes cidades.

Além do que, é um horror atrás do outro esse pedido de ajuda: primeiro dá o endereço do pobre catador e pede que enviem aos órgãos competentes; depois ainda diz que o cachorro é de raça , não sabe qual (mas acentua que isso não importa, mesmo se fosse vira-lata: "algo precisa ser feito")

Deus que nos livre e guarde dessa gente!

quarta-feira, outubro 29, 2008

A ideologia sem ideais da sociedade de consumidores




Zygmunt Bauman
Publicado em La Repubblica, 16 de setembro de 2007
O sociólogo polonês escreveu este ótimo artigo antes da mais nova crise do capitalismo e de um certo abalo no "pensamento único". Vai continuar muito duro de roer esse pensamento e talvez demore muito qualquer mudança, mas é muito bom contar gente que esclarece as coisas como ele.



Em junho passado, pouco após sua eleição a Presidente da França, Nicolas Sarkozy declarou, numa entrevista televisiva: “Não sou um teórico, não sou um ideólogo, não sou certamente um intelectual: eu sou um concreto”. O que quer dizer com estas palavras? Com toda probabilidade queria dizer que crê firmemente em algumas convicções, enquanto com igual firmeza rejeita resolutamente outras.

Tudo somado, afirmou publicamente ser um homem que crê “no fazer, não no pensar” e conduziu sua campanha presidencial convidando os franceses a”trabalhar mais e ganhar mais”. Disse várias vezes aos eleitores que trabalhar mais duramente e por mais tempo para se tornarem ricos é coisa boa. (Trata-se de um convite que os franceses parecem ter achado atraente, mesmo que não o tenham de fato considerado unanimemente sensato do ponto de vista prático: segundo uma sondagem TBS-Softes, 39% dos franceses consideram que seja possível se tornarem ricos ganhando na loteria, contra 40% que consideram que se fica rico graças ao trabalho). Declarações como estas, se são sinceras, respeitam todas as condições da crença e cumprem a principal função que se espera das crenças: dizem o que se deve fazer e suscitam a confiança que, assim fazendo, se obterão resultados positivos. Manifestam, além disso, o comportamento agnóstico e partidário normalmente conexo com uma “ideologia”.

À filosofia de vida de Nicolas Sarkozy falta somente uma das características das “ideologias que conhecemos até agora”, ou seja, uma certa concepção de uma “totalidade social” que, como foi sugerido por Emile Durkheim, seja “maior que a soma das partes”, vale dizer diversa, por exemplo, de um saco de batatas e, por conseguinte, não redutível ao acúmulo dos elementos singulares nele contidos. A totalidade social não pode ser reduzida a um agregado de indivíduos, cada um dos quais persiga suas finalidades privadas e seja guiado pelos seus desejos e por suas regras privadas.

As reiteradas afirmações públicas do Presidente francês sugerem, ao invés disso, precisamente uma redução deste tipo.

Não parece que as previsões sobre o “fim das ideologias”, comuns e amplamente aceitas há vinte e três anos, se tenham realizado ou estejam por fazê-lo. As afirmações aparentemente paradoxais que citei indicam, ao invés, a surpreendente virada realizada hoje pelo conceito de “ideologia”. Em contraposição a uma longa tradição, a ideologia que é atualmente pregada pelas cúpulas para que seja apropriada pelo povo coincide com a opinião de que pensar na “totalidade” e elaborar concepções da sociedade justa sejam uma perda de tempo, enquanto irrelevante para os destinos individuais e para o sucesso na vida. A nova ideologia não é uma ideologia privatizada e, de resto tal noção seria um oxímoro, porque a provisão de segurança e confiança em si mesmos, que constitui o principal empenho das ideologias e a condição primária de seu caráter sedutor, seria irrealizável sem uma adesão pública e de massa. Mas ela é, ao invés, uma ideologia da privatização. O convite a “trabalhar mais e ganhar mais”, convite dirigido aos indivíduos e adaptado somente a usos individuais, solapa aqueles do passado a “pensar na sociedade” (ou na comunidade, na nação, na igreja, na causa).

Sarkozy não é o primeiro que procura aviar ou fazer acelerar tal transformação: a precedência cabe a Margaret Thatcher e ao seu memorável anúncio segundo o qual “não existe algo que se possa chamar de 'sociedade', existem somente o governo e as famílias”. Trata-se de uma nova ideologia para a nova sociedade individualizada, a propósito da qual Ulrich Beck escreveu que homens e mulheres, enquanto indivíduos, deverão agora encontrar soluções individuais a problemas criados pela sociedade e implementar individualmente tais soluções com a ajuda de capacidade e recursos individuais. Esta ideologia proclama que é inútil, e mesmo contraproducente, unir as forças e subordinar as ações individuais a uma “causa comum”. Ela perde de vista a solidariedade social, zomba do princípio da responsabilidade comum pelo bem-estar dos membros da sociedade, considerando-o fundamento do “Estado assistencial”; admoesta que interessar-se pelos outros é a receita para criar a aborrecida “dependência”.

Trata-se também de uma ideologia feita na medida da nova sociedade de consumidores. Ela representa o mundo como um depósito de objetos de consumo potencial, a vida individual como uma perpétua busca de transações que ocorrem tendo por objetivo a máxima satisfação do consumidor e o sucesso como um incremento do valor de mercado dos indivíduos. Amplamente aceita e solidamente acolhida, ela liquida com suas antagonistas com um seco “não existem alternativas”. Tendo, assim, redimensionado os seus adversários, ela se torna, para usar a memorável expressão de Pierre Bourdieu, verdadeiramente ‘pensée unique’, pensamento único. Pelo menos na parte rica do planeta a implantação desta impiedosa concorrência entre indivíduos não é a sobrevivência física, nem a satisfação das necessidades biológicas primárias e necessárias à sobrevivência, nem o direito de auto-afirmação, de se dar os próprios objetivos e decidir que tipo de vida se pretenderia viver.

Exercitar tais direitos é considerado, vice-versa, um dever de cada indivíduo. Além disso, parte-se do pressuposto de que tudo aquilo que acontece aos indivíduos seja conseqüência do exercício destes direitos, ou então, de gravíssimos erros em tal exercício, até sua blasfema recusa. Assim, tudo o que acontece aos indivíduos é, em geral, definido retrospectivamente como devido à responsabilidade de cada um. O que agora está plena e verdadeiramente em jogo é o “reconhecimento social” daquelas que são vistas como escolhas individuais, ou então, da forma de vida que os indivíduos praticam (por escolha ou forçosamente).

Reconhecimento social” significa aceitação do fato de que o indivíduo que pratica uma certa forma de vida conduz uma existência digna e decente, e por este motivo merece o respeito devido e prestado aos outros indivíduos dignos e decentes. A alternativa ao reconhecimento social é a negação de dignidade, isto é, a humilhação e este sentimento nutre ressentimento. É correto afirmar que, numa sociedade de indivíduos como a nossa, esta seja a mais venenosa e implacável forma de ressentimento que cada um pode experimentar, bem como a mais comum e prolífica causa de conflito,de rebelião e de sede de vingança.

Negação do reconhecimento, recusa de prestar respeito e ameaça de exclusão têm substituído desfrutamento e discriminação, tornando-se as formas mais comuns para explicar e justificar o descontentamento que os indivíduos experimentam no confronto com a sociedade ou daqueles setores e aspectos da sociedade aos quais eles são diretamente expostos (pessoalmente ou através da mídia) e dos quais fazem experiência de primeira mão. Isso não quer dizer que a humilhação seja um fenômeno novo, específico da atual forma da sociedade moderna, porque, ao contrário, ele é antigo quanto à socialidade e à convivência entre os homens. Isso quer dizer, todavia, que na sociedade individualizada de consumidores as mais comuns e “eloqüentes“ definições e explicações das aflições e dos mal-estares que derivam da humilhação deslocaram rapidamente, ou estão deslocando, a própria referência do grupo e da categoria às pessoas singulares.

Ao invés de serem atribuídas à injustiça ou ao mau funcionamento do organismo social, procurando, então, remédio numa reforma da sociedade, os sofrimentos individuais tendem a ser sempre mais percebidos como resultado de uma ofensa pessoal, de um ataque à dignidade pessoal e à auto-estima, invocando, então, uma reação pessoal ou uma vingança pessoal. Esta ideologia, como todas as ideologias por nós conhecidas, divide a humanidade. Mas, além disso, ela gera divisão também entre quem lhe presta fé, dando capacidade a qualquer um e tornando todos os outros incapazes. Deste modo, ela endurece o caráter conflituoso da sociedade individualizada/privatizada.

Debilitando as energias e neutralizando as forças que potencialmente estariam em condições de atacar-lhe o fundamento, esta ideologia conserva tal sociedade e torna mais frágeis as perspectivas de uma renovação da mesma.

terça-feira, outubro 21, 2008

Que falta ele faz!

Do site Cronópios

http://www.cronopios.com.br/site/resenhas.asp?id=3582

6/10/2008 17:09:00

Que falta ele faz!



Por Branca Ferrari




Há 52 anos, em outubro de 1956, nascia o Suplemento Literário do jornal “O Estado de S. Paulo”, um dos projetos mais ousados já desenvolvidos no país em prol da literatura e da arte. Entre seus criadores e realizadores estavam intelectuais do porte de Antonio Candido, Décio de Almeida Prado, Wilson Martins, Paulo Emílio Salles. Entre os colaboradores, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Netto, Mario Pedrosa, Sérgio Buarque de Holanda, Lêdo Ivo.

O resgate histórico desta experiência cultural inigualável foi feito pela jornalista Elizabeth Lorenzotti em seu livro “Suplemento Literário – Que falta ele faz!”, lançado pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. Com a acuidade do bom jornalista, a autora percorre a extraordinária trajetória do Suplemento Literário, desde sua concepção e desenvolvimento ao seu desaparecimento, recheando-a com entrevistas feitas com muitos dos personagens que participaram deste projeto. “O Suplemento nascia com a natureza artística”, diz Lorenzotti, mantendo absoluta independência e autonomia em relação à direção de redação do jornal diário. E durante sua existência jamais abandonaria a meta traçada por seus criadores, o de ser uma espécie de revista de cultura, livre de preconceitos literários e artísticos.

O farto material pesquisado pela autora comprova isso. O único critério exigido para aparecer no Suplemento era a qualidade literária e artística das obras. Não havia preconceito em relação ao novo, “maldito”, ou engajado politicamente. Suas páginas seriam abertas a bons poetas e escritores, consagrados ou novos no mercado. Ali seriam publicados, ao lado de Drummond, Bandeira, Vinicius, Murilo Mendes, Osman Lins, Guimarães Rosa, jovens como Lygia Fagundes Telles, Dalton Trevisan, João Antônio, Delmiro Gonçalves, Thiago de Mello, Geir Campos, Jamil Haddad e concretistas como os irmãos Campos e Décio Pignatari numa época em que eram vistos como uma espécie de moleques irresponsáveis.

Elizabeth resgatou alguns textos surpreendentes do Suplemento para o leitor de seu livro. Entre eles, um conto inédito de Guimarães Rosa, “Fita Verde no Cabelo”; uma original ficção de Lêdo Ivo sobre Rimbaud em visita à biblioteca municipal de Charleville, “O Consulente Indesejável”; um conto inédito de 1966, “Ulisses”, de nosso grande compositor, cantor e agora escritor, Chico Buarque de Holanda.

Chama a atenção, também, para o lamento de Wilson Martins e de Edgard Cavalheiro sobre o panorama literário da época. Dizia entre outras coisas o primeiro: “... porque se há pouco papel, existem ainda menos leitores; só é leitor, pelo menos no Brasil, os que foram realmente mordidos pelo vício da leitura; a expansão do livro em públicos mais largos, além de continuar no terreno das coisas ideais, não pode ser paga pelo preço ruinoso representado por uma queda no nível das obras editadas...”. Já o segundo observava: ...“não é fácil, por exemplo, para o autor nacional ainda inédito encontrar quem lhe publique as primícias poéticas; livros de contos ou ensaios só excepcionalmente são editados...”. Cinqüenta anos passados e com todo o extraordinário progresso tecnológico assimilado, o quadro literário do país lamentavelmente não mudou muito.

“Suplemento Literário – Que falta ele faz!”, de Elizabeth Lorenzotti, é um dos livros indispensáveis para os que se preocupam com a produção cultural brasileira. Ele não só provoca reflexão sobre a ousadia deste projeto como sobre a ausência em nossa época de alguma coisa semelhante para estimular e fazer avançar a literatura e arte em nossos dias.


Suplemento Literário – Que falta ele faz
autora: Elizabeth Lorenzotti
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 208 páginas
(consulte usando a ferramenta de busca de livros
da parceria Martins Fontes - Cronópios)




Branca Ferrari é jornalista com passagens por jornais da capital como o Estado, Diário do Comércio; por revistas especializadas da Ed. Abril e da área médica; por editoras (Marco Zero, Best Seller, Azul, Canudos), onde atuou em projetos especiais, preparação de texto, tradução; por assessorias de imprensa; pela Rádio 9 de Julho na produção de programa sobre Direitos Humanos. Atualmente desenvolve projetos pessoais. E-mail: brferrari@uol.com.br

segunda-feira, outubro 13, 2008

Carta do poeta Manoel de Barros

Achei no meu baú: resposta delicadissima do poeta Manoel de Barros a uma carta minha, em 1990.

Elizabeth Lorenzotti
Querida amiga

Recebi suas queridas palavras. Muito obrigado.
Essas falas de cangar sapo ou cangar grilos aprendi no Pantanal onde fui criado brincando com terra, debaixos das árvores, sem cuidado de babás e sem a castradora orientação das xuxas.
Mas grilo e sapo são bichos que a gente não consegue cangar. Sapos porque não têm pescoço para receber a canga. E grilo porque prisca demais e não permite canga. Creio que daí vem a expressão que seria o mesmo que dizer:
Vá ser à toa na vida.Vá enfiar gota de chuva em cordão. Essas coisas

Vá tirar leite de veado correndo. Essas coisas."

Escrevi para o poeta,que tinha conhecido via o fotógrafo Marcelo Buainain em uma reportagem lá no Mato Grosso- ele me conseguiu um exemplar onde li algo que me lembrou imediatamente minha tia Alzira, lá de Poços. Era uma figura doce e muito estranha - almoçava às 5 da manhã, extremamente magra e enrugada e segundo a família, ficou assim por desgosto, o pai não deixou que ela casasse com quem amava.
Bom a tia Alzira, quando lhe enchíamos o saco, disparava:
"Vai cangar sapo!"
E eu nunca soube o que era, até o gentil poeta me responder.
Pois é, como botar canga em sapo? Em grilo?
Cartinha preciosa.
Dessas coisas...

domingo, outubro 05, 2008

Não te amo mais

Peter Scheier-1950
Cortiço do Brás


Laisses-moi devenir

L’ombre de ton ombre

L’ombre de ta main

L’ombre de ton chien

Ne me quittes pas

Ne me quites pas

Ne me quittes pas

Jacques Brel


Quando deixei de me apaixonar pela minha cidade? Desde que andávamos a pé pelo Viaduto do Chá, estudantes de colégio estadual, para ouvir as conversas dos outros?

E para estudar na Biblioteca Municipal? E depois, um passeio pela Consolação com São Luiz, entrando no Cha Mon e pedindo cafezinho para quatro: aqui não servimos cafezinho meninas.

Mas quando, quando foi? E mais tarde, os passeios noturnos, sempre a pé, vindas de ônibus da distante zona norte para o maravilhoso, então, centro da cidade: cantinas com toalhas xadrez nas mesas, vinho, spaghetti, risos, beijos sob o viaduto, lágrimas, amores vãos.

O apartamento no bairro operário, a ex-fábrica de tijolos aparentes em frente à janela, o baú com tantos escritos, mesmo ainda tão jovem: Largo do Pari.

E antes, o Brás. Ex-italiano, já se tornando nordestino. Lar dos avós italianos e bisavós portugueses, da mãe. Rua Catumbi, rua Cavalheiro, passei ontem por lá, noite, não mais a pé... Rua Cavalheiro que imaginava vasta, como minha avó Julia dizia- mas é tão pequenina, quase um beco.

E casas ainda restam, tão velhas. Moradias em cortiços na rua Marcos Arruda, onde a tia Judith com seus 20 anos criava dois filhos sem brinquedos, enterrava uma menina e tinha de lavar, todo santo dia, privadas coletivas. Hoje ainda são as casinhas ali, não mais a farmácia da esquina, não mais as cadeiras nas calçadas.

Mas quando deixei de me apaixonar, eu que nem conhecia esse lado do Brás dos trabalhadores italianos,e espanhóis e portugueses e brasileiros todos, e tantos? Nem tinha nascido.

Que nostalgia esta, então, ao passar por essas ruas do bairro histórico e tão abandonado, numa noite de sexta? Lá onde ainda se vêem velhos pelas ruas, muitos.

Onde ainda há portões e jardins, escondidos alguns. A casa mais bela, na esquina da rua Martim Francisco, que emoção essa ao ver, sobrado grande de tijolinhos aparentes, jardim, luzes acesas, quartos com varandas. E parece, uma lareira talvez.

Numa travessa, um estreito corredor fechado por um portão. Uma espécie de vila, com casinhas ao lado direito de quem entra, algumas reformadas, outras iguais ao que eram quando foram construídas, mais de 50, 60 anos e é como uma outra cidade, não essa, tão avoada, que Deus te proteja de seus perigos, me diz a tia Judith lá das Minas Gerais.

(Quem bom que a gente pôde mudar daquele cortiços, ela me diz hoje, que sorte ter a família se mudado para a outra cidade escondida no meio das montanhas).

E de longe ouço os ecos do português italianado: que sputza, dizia minha mãe. (Que não era filha de italianos, mas de brasileiros descendentes de portugueses e de índios, na árvore distante). O sangÜE -- dizia a vô Maria --italiana, mãe do pai. A comida forTífica, mangia que fa benne).Marchejani, ela era de lá, da região de Marchi.

Mesmo hoje, mesmo sendo outro bairro, embora o mesmo, e eu sendo outra, embora a mesma, bate tanto sentimento. E se “o sentimento é tudo”, como descobre o Fausto de Goethe, é preciso ser forte o bastante para não transformá-lo num roteiro de filme de quinta categoria.

Mas do bairro onde me criei , no alto do morro - e sempre acabo morando em altos de morros, como verificou meu amigo cartunista/carteiro Eton - da zona norte, não tenho saudades. Lá, da lama que se formava durante as chuvas, das galochas que tínhamos de usar sobre os sapatos para chegar ao asfalto, de lá não há como sentir saudades.

A não ser do luminoso colégio estadual que salvou muitas de nossas pequenas cabecinhas.

Mas eu ainda amava minha cidade, mesmo assim. Fora daquele bairro, eu queria sair daquele bairro, queríamos atravessar o rio Tietê -- não como ele, o garoto filho de árabes, que desejava o glamour e a grana dos Jardins. E foi.

Queríamos o cinema, o teatro, a biblioteca, a livraria, o jornal. (E fomos ). Que estavam, sim, do outro lado do rio ( em que margem?)

Amava o Vale, o prédio dos Correios, o Largo de São Bento, a Praça do Patriarca, a loja que vendia bombons. O grande magazine em frente ao Teatro Municipal, onde entramos muitos, mas muitos anos depois.

Na Vila Maria Zélia, moradias criadas pelo industrial Jorge Street para seus operários da fábrica de tecidos, linda, devastada, entrei para escrever uma reportagem, tantos e tantos anos depois.

Cacos de uma era.

Ex-vilas operárias ainda resistem, reformadas, ruas fechadas por particulares. E sobradinhos, característicos da cidade que se verticalizava tão cedo, espaço ficando caro.

Por que tanto me tocam o coração:

--estátuas de santinhos às varandas, também chamadas de alpendres, iluminadas por uma lampadinha;

--ladrilhos com quadrinhos pendurados- Deus guarde nosso lar; Feliz foi Adão, que nunca teve sogra e nem caminhão;

--andorinhas de louça num vôo estático, pregadas;

--e a Santa Ceia.

Minha casa minha casinha, dizia a vó Julia, não troco por um palácio.

Não sei mesmo quando meu amor pela minha cidade se acabou.

Quando ela me deixou? Naquele arremedo de hospital público onde morreu minha mãe, eu sei. Quando talvez a jovem médica residente tenha “diminuído o investimento”-que é como eles chamam os aparelhos. Quando eu urrava pelas ruas saindo do Incor, e todos olhavam, lá onde minha mãe não conseguiu uma vaga na UTI, ficou num puxadinho de um pronto socorro improvisado.

E onde mais?

Nos dois semáforos onde, no mesmo dia,em horários diferentes, vieram os meninos: um me roubou, o outro acreditou que eu não tinha mais nada e se foi?

Na Avenida Brasil quando um menino com os braços escondidos nas mangas (subentendendo uma arma?) queria dinheiro, a voz se fazendo de grossa. Não tenho, eu disse, mas tenho essas balas e ele abriu as mãos desarmadas e levou as balas?

Como deixar de tremer e de chorar, sem mais paixão, apenas a dor?





quinta-feira, setembro 25, 2008

Sertão

Foto António José Ribeiro


Tudo será
esquecido


Tudo será
aprendido


Tudo terá
se fingido


Tudo sertão

quarta-feira, setembro 17, 2008

HERÓI. MORTO. NÓS.



Lourenço Diaféria nasceu no Brás e era um grande cronista da cidade. Da gente humilde, anônima, desta São Paulo de tão escondidos encantos.
Achei lindo o titulo de seu último livro
"Mesmo a noite sem luar tem lua".

Soube há pouco que ele se foi, aos 75 anos(
28 de agosto de 1933/ 16 de Setembro de 2008, sob o signo de Virgem)
Em 1 de setembro de 1977 publicou estra crônica na Folha, que lhe valeu a demissão, a prisão e um processo pela Lei de Segurança Nacional. (A estátua de Caxias fica lá, perto da Folha).
Era um homem de bem, um jornalista decente, um grande cronista. Tudo o que nos faz falta.Estes últimos meses têm nos levado muitos dos bons, insubstituíveis.
Mas mesmo a noite sem luar tem lua...

Herói. Morto. Nós


"Não me venham com besteiras de dizer que herói não existe. Passei metade do dia imaginando uma palavra menos desgastada para definir o gesto desse sargento Sílvio, que pulou no poço das ariranhas, para salvar o garoto de catorze anos, que estava sendo dilacerado pelos bichos.

O garoto está salvo. O sargento morreu e está sendo enterrado em sua terra.

Que nome devo dar a esse homem?

Escrevo com todas as letras: o sargento Silvio é um herói. Se não morreu na guerra, se não disparou nenhum tiro, se não foi enforcado, tanto melhor.

Podem me explicar que esse tipo de heroísmo é resultado de uma total inconsciência do perigo. Pois quero que se lixem as explicações. Para mim, o herói -como o santo- é aquele que vive sua vida até as últimas consequências.

O herói redime a humanidade à deriva.

Esse sargento Silvio podia estar vivo da silva com seus quatro filhos e sua mulher. Acabaria capitão, major.

Está morto.

Um belíssimo sargento morto.

E todavia.

Todavia eu digo, com todas as letras: prefiro esse sargento herói ao duque de Caxias.

O duque de Caxias é um homem a cavalo reduzido a uma estátua. Aquela espada que o duque ergue ao ar aqui na Praça Princesa Isabel -onde se reúnem os ciganos e as pombas do entardecer- oxidou-se no coração do povo. O povo está cansado de espadas e de cavalos. O povo urina nos heróis de pedestal. Ao povo desgosta o herói de bronze, irretocável e irretorquível, como as enfadonhas lições repetidas por cansadas professoras que não acreditam no que mandam decorar.

O povo quer o herói sargento que seja como ele: povo. Um sargento que dê as mãos aos filhos e à mulher, e passeie incógnito e desfardado, sem divisas, entre seus irmãos.

No instante em que o sargento -apesar do grito de perigo e de alerta de sua mulher- salta no fosso das simpáticas e ferozes ariranhas, para salvar da morte o garoto que não era seu, ele está ensinando a este país, de heróis estáticos e fundidos em metal, que todos somos responsáveis pelos espinhos que machucam o couro de todos.

Esse sargento não é do grupo do cambalacho.

Esse sargento não pensou se, para ser honesto para consigo mesmo, um cidadão deve ser civil ou militar. Duvido, e faço pouco, que esse pobre sargento morto fez revoluções de bar, na base do uísque e da farolagem, e duvido que em algum instante ele imaginou que apareceria na primeira página dos jornais.

É apenas um homem que -como disse quando pressentiu as suas últimas quarenta e oito horas, quando pressentiu o roteiro de sua última viagem- não podia permanecer insensível diante de uma criança sem defesa.

O povo prefere esses heróis: de carne e sangue.

Mas, como sempre, o herói é reconhecido depois, muito depois. Tarde demais.

É isso, sargento: nestes tempos cruéis e embotados, a gente não teve o instante de te reconhecer entre o povo. A gente não distinguiu teu rosto na multidão. Éramos irmãos, e só descobrimos isso agora, quando o sangue verte, e quanto te enterramos. O herói e o santo é o que derrama seu sangue. Esse é o preço que deles cobramos.

Podíamos ter estendido nossas mãos e te arrancando do fosso das ariranhas -como você tirou o menino de catorze anos- mas queríamos que alguém fizesse o gesto de solidariedade em nosso lugar.

Sempre é assim: o herói e o santo é o que estende as mãos.

E este é o nosso grande remorso: o de fazer as coisas urgentes e inadiáveis -tarde demais.

sexta-feira, setembro 12, 2008

Longa é a arte



"Em homenagem ao poeta Paulo Leminski, Rubens Jardim cravou Herrar é Umano --transferência de um código verbal gasto para um código visual inovador", diz a legenda da foto no interessantíssimo site do poeta

http://www.rubensjardim.com

falando sobre os trabalhos apresentados na I Bienal Internacional de Poesia de Brasília, realizada de 3 a 7 de setembro.
Ele diz:

"Coloco aqui esta mensagem com o intuito de mostrar minha admiração pelos critérios democráticos que nortearam a realização da l Bienal Internacional de Poesia de Brasília. A minha participação é a prova mais cabal disso. Afinal, não pertenço a nenhum grupo, não me tornei celebridade em nenhuma área, não sou parente dos irmãos Campos, não tenho poesia traduzidas para o francês, não é meu hábito puxar o saco de ninguém, e nem recebi premiação em nenhum concurso. Sou apenas mais um poeta –já meio velho--mas incansável na luta honesta e diária com as palavras."

Rubens Jardim fez parte do movimento Catequese Poética, liderado pelo poeta catarinense Lindolf Bell.
http://www.lindolfbell.com.br/home.php
Belissimo site

Bell ia ao nosso colégio estadual, na zona norte de São Paulo, declamar, como declamava pelas ruas e viadutos.
Eu me lembro, eu me lembro:

"Eu sou da geração das crianças traídas"

Nós tínhamos um grupo chamado "Roda de Poesia", não sei se antes ou depois dele, e nos apresentávamos em colégios da região.
Uma roda, um violão, garotas e rapazes declamando seus poemas.
Preciso contar essa história melhor dia desses, porque tenho o roteiro de uma dessas apresentações, e poemas de uns e de outras.

Ao Rubens Jardim, que é um grande poeta, e trava sua" luta honesta e diária com as palavras", agradeço por me lembrar dessas coisas tão boas.

Não é fácil lutar com as palavras em qualquer tempo, nada fácil em tempos tão atravessados e oblíquos como estes.

Entro na página de Lindolf Bell, pontuada por poemas que faíscam e concordo:

"Nada é em vão, embora pareça o contrário".














quinta-feira, setembro 11, 2008

Qué es Bolívia?

Não nos conhecemos, povos , poetas e escritores da América Latina.

Aqui, o poeta e cineasta boliviano Alfonso Gumucio Dagron

Test

¿Qué es Bolivia?

¿Un conglomerado de cadáveres?
¿Un colectivo lleno de militares?
¿Una masa enorme de tierra silenciosa?
¿Una planicie de rostros terrosos?
(Impasibles miradas cansadas de esperar)
¿Una altitud de cartón-piedra?
¿Una caída vertical de la pobreza a la nada?
¿Un grupo de niños pijes de anchas corbatas?
¿Una cadena de resentimientos y mentiras?
¿Un puñado de crímenes detrás de la basura?
¿Un niño muerto en una caja de zapatos?
¿Un libro de poemas que arde porque sí?
(Porque invade la sangre de quien lo lee)
¿Un escritorio, dos escritorios, tres escritorios?
¿Una tienda de campaña?
¿Una lluvia pasajera?
¿Un costal de títeres quemados?
¿Un periodista que siempre cae parado?
(Como trípode con un rollo de dólares
que le alegra el ano)
¿Una página menos, siempre tan lejos
de la historia?
¿Un grupo de universitarios confundidos?
¿Un poema, dos poemas, este poema?
Escoja solamente diecinueve respuestas.

Ni una menos.



Bolívia, 11 de setembro








Santiago do Chile, março de 1973

Foto Elizabeth Lorenzotti


















Reuters/Terra Magazine -Bolivia, 11 de setembro de 2008


Em março de 1973, em Santiago do Chile, que enfrentava prolongada greve de caminhoneiros e e intervenções dos EUA nos bastidores contra o governo socialista de Salvador Allende, manifestações de rua tentavam defender o governo eleito contra as tramas do golpe.

Em 11 de setembro de 1973, o bombardeio de La Moneda, a morte de Allende , as prisões e assassinatos iniciavam o periodo de trevas regido pelo general Pinochet, que hoje o mundo todo sabe quem foi e o que fez .

No mesmo dia,35 anos depois, a Bolivia estuda decretar estado de sítio contra uma série de atentados terroristas e parece que, mais uma vez, a Historia se repete. Tomara que não.
Sabotagem de gasodutos, invasão de prédios públicos, conflitos nas ruas.

O Cônsul-geral da Bolívia em Mato Grosso - estado que faz fronteira com o departamento de Santa Cruz de La Sierra, Victor Cuba faou ao Terra Magazine que há setores descontentes com a vitória do presidente Evo Morales nas urnas, que "financiam" os protestos contra a nova proposta de Constituição:

- Há interesses. A nova Constituição não muda muitas coisas, mas toda em um problema básico: a questão das terras. E não é o pobre que tem a terra na Bolívia - afirma."

Hoje, o Terra Magazine, em matéria de Diego Salmen, entrevista o deputado Florisvaldo Fier, o Dr. Rosinha, presidente do Parlamento do Mercosul. Que compara:

"Naquela ocasião foi financiada pelos Estados Unidos, e agora novamente os Estados Unidos estão por trás de todo esse processo - acusa Rosinha, que também é deputado na Câmara federal pelo PT paranense."

"O presidente do Parlasul levanta, em entrevista a Terra Magazine, a possibilidade de o governo dos Estados Unidos ter "um dedo" no conflito boliviano. Ele propõe que o Grupo de Amigos da Bolívia (Brasil, Colômbia e Argentina) se reúna para discutir a crise no país.

Rosinha também critica a elite boliviana, que segundo ele mantém vínculos com as ditaduras militares que já governaram o país.

- Para você ter uma idéia: 50 anos atrás, essa maioria (indígena) era proibida de entrar na praça Murillo, que é a praça em frente ao palácio do governo. Quer dizer, imagina que elite é essa."

Ouvi de um amigo uma vez o relato de entrevista com uma miss boliviana, loira tinta, que comentava com o repórter :

"Nem todos os habitantes da Bolívia são índios, como você está vendo".






quarta-feira, setembro 10, 2008

A rolinha e seu ninho

Foto blog Liperama

Minha querida amiga Maria Inez, uma pessoa de grande sensibilidade e força interior me conta essa linda historinha.
Coisas que continuam a ocorrer com harmonia na natureza, enquanto nós, os homens...


"No meu jardinzinho na frente da casa tem um arbusto de uns 3 metros de altura...sabemos que sempre há ninho de passarinho mas nunca flagramos ovos ou bebês. Eis que há 25 diasmais ou menos vimos uma rolinha sentadinha sobre um ninho arquitetonicamente construído...ela ficou todo esse tempo quieta, imóvel sobre o ninho e depois que nasceram 2 filhotes continua lá cumprindo sua missão até o "desmame". que disciplina!!!!!!!!!!já choveu, ventou, fez calor e ela lá. O macho se encarrega de alimentá-la e a família está em paz. Será que alguém ensinou o que fazer?"

sábado, setembro 06, 2008

Machado, escritor e vidente

O que o meu amigo Antonio Romane achou num livro de Lucia Miguel-Pereira sobre Machadão jornalista, aos 20 e poucos anos




terça-feira, setembro 02, 2008

Candido: O direito à literatura

Foto Jornal da Unicamp


Escrevi esta matéria para a edição de agosto da revista Panorama Editorial

Ele é um dos maiores intelectuais do país e completou 90 anos no dia 24 de julho. Embora afirme que “quase nonagenário, não posso dizer coisas novas”, acompanhar a linha de pensamento deste professor de tantas e tantas gerações é sempre um exercício enriquecedor e esclarecedor.

Escolhido para receber o troféu Juca Pato de Intelectual do Ano de 2007, Antonio Candido de Mello e Souza foi considerado "uma das inteligências mais completas e influentes da cultura brasileira contemporânea" e "autor de várias obras de análise, interpretação e avaliação crítica do principal acervo literário do Brasil e da herança européia”.
Mas para além de sua grande obra, Candido é um homem simples e generoso, bem humorado e humano. Um mineiro nascido no Rio, ele mesmo se define-criado em Cássia e em Poços de Caldas onde seu pai, o médico Aristides de Mello e Souza, foi o primeiro diretor das Termas Antonio Carlos.

Nasceu e cresceu em casas cheias de livros, o pai e a mãe tinham bibliotecas separadas, não só de medicina, mas de literatura, história, filosofia. Em 1989, Candido e seus irmãos Roberto e Miguel doaram 3.528 livros à Biblioteca Central da Unicamp, mediante o pedido de que a coleção ganhasse o nome do pai. A maioria dos livros pertencia ao professor.

Quando era criança, o pai costumava ler e explicar todas as noites, depois do jantar, certos textos em português ou francês que julgava oportunos. Entre 13 e 14 anos Candido ouviu o pai ler muito de Os Sertões, na primeira edição que possuía.

Ele aponta a estadia em Paris- para onde o pai foi se aperfeiçoar, entre 1928 e 1929 e a ida, em 1930, para Poços de Caldas “que contava com uma livraria excelente, com livros franceses e ingleses além dos nacionais”, como pontos importantes de sua formação. Cândido tornou-se freguês assíduo. Conta o professor que “foi ela a única, em toda a minha vida, onde vi à venda o raríssimo Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade, cuja tiragem foi mínima e quase não circulou”.

Com acontecia muito naquela época, Candido não freqüentou escola regular no primário, apenas três meses. A mãe o ensinou em casa: a ler, a escrever, aritmética, geografia, história, um pouco de francês. Em Poços fez o quinto ano primário, chamado "curso de admissão" ao ginásio.

Além de sua mãe e de uma professora na França, houve outra pessoa que muito ensinou o jovem Candido: dona Teresina Carini Rocchi, de quem escreveu a biografia no livro Teresina e etc. (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980).

A velha militante anarquista era amiga da mãe de Candido. “Ela me iniciou no mundo da cultura italiana além de contribuir para o meu interesse pelo socialismo. Cantávamos juntos canções e trechos de ópera, ela me fez ler muitos autores italianos cujos livros me dava e em geral falava italiano comigo”.

O pai queria que ele fosse médico, mas segundo ele mesmo, “graças a Deus”, foi reprovado nos exames para a Faculdade de Medicina. Em 1939 entrou no vestibular para as faculdades de Direito e Filosofia. Não terminou o curso de Direito, porque foi nomeado professor-assistente de Filosofia e casou-se com sua companheira da vida inteira, Gilda de Mello e Souza, falecida em 2005. Ela fazia parte do grupo de colegas, também amigos da vida inteira, desde os bancos da faculdade, com os quais fundou a revista Clima, na época da Segunda Guerra.

Era uma revista de cultura, feita por jovens universitários, praticamente a mesma equipe que depois fundou e colaborou com o Suplemento Literário do jornal O Estado de S. Paulo e tornou-se conhecida como a primeira geração de críticos saídos da USP. Ele conta: “Nós temos consciência de nos termos formado uns aos outros: Antônio Branco Lefèvre, estudante de medicina e depois jovem médico naquela altura, que se tornou um dos maiores neuropediatras do Brasil, foi crítico de música da revista; Lourival Gomes Machado era professor de política e ao mesmo tempo crítico de artes plásticas, tendo reorganizado a Faculdade de Arquitetura como diretor; Décio de Almeida Prado, ensinava filosofia no Colégio Universitário e era crítico de teatro; Rui Coelho, que tinha um saber universal, era especialista em personalidade e cultura, professor de sociologia, praticante do teste de Rorscharch, mas escreveu um livrinho sobre Proust e foi crítico de cinema. A nossa turma era assim”.

Um dos seus mais belos e importantes textos chama-se O direito à literatura, em Vários Escritos (São Paulo, Duas Cidades, 1995). Ele a coloca entre os direitos fundamentais.

O professor fala, no texto, sobre o poder universal dos grandes clássicos, “que ultrapassam a barreira da estratificação social e de certo modo podem redimir as distâncias impostas pela desigualdade econômica, pois têm a capacidade de interessar a todos e devem ser levados ao maior número”.

“Lembro de ter conhecido na minha infância, em Poços de Caldas, o velho sapateiro italiano Crispino Caponi, que sabia o Inferno completo e recitava qualquer canto que se pedisse, sem parar de bater as suas solas”.

Para Candido, a literatura “humaniza em sentido profundo, porque faz viver”.

E o que entende ele por humanização?“ O processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso de beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante”.

O Brasil é feliz por contar com Antônio Candido.