Sueli Carneiro
Doutora em educação pela Universidade de São Paulo (USP) e diretora do Geledés — Instituto da Mulher Negra
“A mulher que cuida das crianças pede ao menino de cinco anos que explique o que acontece. Ele diz: ‘A polícia entrou aqui, mandou todas as crianças encostarem na parede desse jeito e falou que levaria todos nós para a Febem se a gente não contasse onde estavam escondidas armas e drogas’. O garoto se juntou à menininha, mãos na parede. Mais sete crianças repetiram o ato.” (Folha de S.Paulo, 21/5/06)
A reportagem da qual retirei essa epígrafe estende-se na descrição das incursões policiais na favela dos Pilões (zona sul de São Paulo). Numa das visitas, três mortos: jovens com menos de 30 anos, todos trabalhadores, um deles epiléptico. O patrão de dois deles custeou os funerais e ofertou aos corpos urnas de madeira nobre talvez num gesto simbólico de resgate da dignidade daqueles jovens e expressão da consciência da injustiça cometida. É apenas um dos casos das dezenas que estão vindo a público pela pressão de órgãos de imprensa, do Ministério Público Estadual de São Paulo e do Cremesp (Conselho Regional de Medicina de São Paulo), pela divulgação da relação e acesso aos laudos periciais dos suspeitos mortos pela polícia em represália ao assassinato de policias civis e militares e agentes penitenciários nos ataques perpetrados pelo PCC. Previsível, mas sempre chocante.
Os líderes das associações de policiais civis e militares foram unânimes em responsabilizar as autoridades públicas pelos atos daquela organização criminosa e sobretudo pela morte dos policias e agentes penitenciários insuficientemente equipados para exercerem a função de proteger os cidadãos e defender a própria vida. E, sobretudo, por não estarem informados, segundo alguns relataram, das ameaças que pesavam sobre a vida deles. Sentiram-se traídos.Para o governador de São Paulo, a culpa é da elite brasileira, segundo ele “uma minoria branca muito perversa”. Quem somos nós para discordar de quem conhece, como ninguém, a natureza profunda dos seus. De minha parte entendo que todos estão certos em sua avaliação. Tanto os líderes das associações de policiais quanto o governador. No entanto, nem as autoridades responsáveis pela segurança pública ou pelo sistema prisional, nem a elite perversa são o alvo da represália dos policiais ou do governador. A ira de ambos se abate sobre os de sempre, da parte dos policiais por ação e do governador por omissão ou conivência diante da matança indiscriminada dos que são alvo (embora majoritariamente negros) da perversidade da tal minoria branca. Em 16 de maio, informava-se que, no IML do bairro de Pinheiros em São Paulo, havia fotografia de 15 corpos. A maioria era de jovens, negros e apresentava buracos de bala na cabeça. Desde então os números não pararam de aumentar. Não quero, como sempre, chorar mais esses mortos em praça pública. Clamar contra esse genocídio como tantas vezes já o fiz aqui. Talvez porque, dessa vez, as coisas foram tão longe, atingiram um ponto insustentável, em que é preciso conter a consciência, em sua capacidade de vislumbrar e analisar o horror em toda a sua plenitude, para não desistir. É preciso esquecer por instantes os números de vítimas chacinadas e celebrar a vida e a luta pela emancipação que se trava a cada dia que tanto faz recrudescer a violência e o ódio racial quanto aumenta em cada um de nós a consciência do porquê morremos. É preciso ir ao encontro da vida para buscar forças para resistir. Vou para as ruas, o palco dos sacrifícios e redenções. Respiro o ar poluído desta São Paulo estranha, admiro a paisagem cinzenta deste outono invernal. Nas voltas por alguns quarteirões, vejo crianças negras como as encontradas na favela dos Pilões: meninas de “olhos negros, grandes e redondos penteado maria-chiquinha.” Mas elas estão voltando da escola, mochilas pesadas às costas, trancinhas balançantes. Tagarelam alegremente. Uma alegria que sopra em minha mente um eco que diz: “Viveremos!” Atravesso uma praça e um grupo de adolescentes negros joga carteado. Minha mente viciada na paranóia da violência não deixa de imaginar: se passar um carro de polícia por aqui agora, eles estarão em apuros e pode até acontecer o pior. Parece que jogavam buraco e uma dupla vence festejando com alegre algazarra. Rejeito a armadilha da mente paranóica e deixo a algazarra alegre penetrar dentro de mim e ela também me anuncia: “Viveremos!” Qualquer um de nós pode ser a próxima vítima, mas neste momento ainda estamos aqui, vivos, em testemunho de resistência, contrariando as estatísticas, os prognósticos e os desejos da minoria citada pelo governador ou de seus braços armados, os exterminadores do futuro. Mas, em cada um desses rostos negros que encontro em minha caminhada, pulsa uma esperança de vida que desafia a violência do racismo. Viveremos! Os intelectuais racistas do final do século 19 e começo do 20 estimavam que em torno de 2015 o Brasil estaria livre da “mancha negra”. Sobrevivemos à escravidão, temos sobrevivido à exclusão, sobreviveremos aos periódicosgenocídios. Somos “uma petralhada inextingüível” como disse, em desespero, Monteiro Lobato. Viveremos!
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