Um artigo de Anna Lucia Marcondes em Cultura e Mercado
Meu primeiro beijo na boca foi no Cine Iguatemi. Meu primeiro debate, na saída do cine Belas Artes ainda Gaumont Belas Artes, com amigos a caminho do café de mesmo nome virando na Paulista.
Ficávamos entre livros e revistas, conversando e fugindo do vento com garoa normal da cidade. Usávamos cachecóis e chapéus ou boinas. Carregávamos além de livros, inquietações, vontades e uma ânsia de fazer história. Artistas de primeira bagagem e pensadores sedentos de idade e conhecimento saíamos das sessões de fim de noite alguns dias atravessando pela galeria subterrânea e, dependendo do saldo financeiro, indo ao Riviera, ao Baguette ou desciamos ao lado oposto, indo ao Frevinho e algumas vezes até o Pirandello. As calçadas da Paulista com Consolação assistiam risos e frases de efeito e muita criatividade. Como vários jovens desde os anos 50, fomos criados assim, saindo de madrugada, na garoa, discutindo sonhos que criaram a consciência crítica, a ética e a postura inerente ao povo desta cidade.
Existe hoje o pensamento contemporâneo da história móvel, onde várias referências estabelecem o real conteúdo do momento ou fato histórico, não mais uma só escrita, um só olhar. Isso trouxe uma maneira diferente há pelo menos três décadas, de contar nossa vida. Filósofos e historiadores sociais no mundo vêm despertando pensares e atitudes vitais para nossa atualidade, para nossas sociedades. É fato que, uma construção de vida é fundamentada na memória (e no conhecimento), construindo um presente consciente e participativo para se alcançar a realização de um futuro possível e feliz.
Acredito que devamos lançar um olhar antropológico e cultural a esta situação do Belas Artes.
Qualquer que seja a definição adotada para a Antropologia é possível entende-la como uma forma de conhecimento sobre a diversidade cultural, ou seja, a busca de respostas para entendermos o que somos a partir do espelho fornecido pelo “Outro ou pelo externo”; uma maneira de se situar na fronteira de vários mundos sociais e culturais, abrindo janelas entre eles, através das quais possamos alargar nossas possibilidades de sentir, agir e refletir sobre o que nos faz ser seres humanos.
Para pensar nossas sociedades, a Antropologia preocupa-se em detalhar os seres humanos que as compõem e com elas se relacionam, seja nos seus aspectos físicos, na sua relação com a natureza (ou meio ambiente urbano no nosso caso), seja na sua especificidade cultural. Para o saber antropológico o conceito de cultura abarca diversas dimensões: o universo psíquico, os mitos, os costumes e rituais, suas histórias peculiares, a linguagem, valores, crenças, leis, relações de parentesco, e outros.
Hoje que respeitamos o traçado da Memória e entendemos a Historia de formação de nossa cidade, sua capacidade de renovação, emergência, superação e inquietude intelectual, abraçando pessoas vindas de todo país e estrangeiros de linguagem e dialetos distintos, não podemos nos aquietar e retirar o olhar antropológico do tema, deixando um ponto cultural de formação vivencial e formativa da personagem da paulistanidade ser retirado ou realocado.
O Cine Belas Artes, no endereço que o acomoda, além de local de encontro e ponto de referência pela importância de sua trajetória e filmografia exibida, é memória viva da cidade. É, não só a referência de um grupo, como o nosso, mas acompanhou a história de gerações de brasileiros, não apenas paulistanos. É um dos mais tradicionais cinemas da capital paulista e seu fechamento, ocasionaria uma perda real em valor histórico-cultural. Esquina de Cultura, é marco histórico do cinema brasileiro, carregando um traço antropológico da cidade. Este cinema marcou uma época nos apresentando o Cinema Novo, o Nouvelle Vague e o Neo Realismo Italiano, reuniu cinéfilos, proporcionou debates sobre Visconti, Fellini, Godard, Glauber, Eric Rohmer, Truffaut, fez projeções de filmes raros, festivais de cinema. Ponto de convergência de lazer, intelectualidade, vanguarda, política, projetava fitas emblemáticas e hoje clássicas. Nos tempos da ditadura, reuniu pessoas que lutavam contra o sistema da época. Pessoas de todas as idades tem se manifestado por sua preservação. Estamos acordados e de olhos abertos. Queremos preservar esta parte da nossa trajetória e permitir a conciliação do cinema de rua com a nova cidade que estamos construindo.
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