sábado, março 21, 2009

Devemos temer os jornalistas

Elizabeth Lorenzotti


Encontrei no baú este meu artigo escrito em 15 de outubro de 1996 para a Folha de S. Paulo, na seção Opinião.

"A notícia dizia que, ao cumprir sua pauta sobre como é fácil roubar bebês de um hospital, uma jornalista de Brasília sequestrou um bebê e foi presa, juntamente com a fotógrafa. A Fenaj (Federação Nacional dos Jornalistas) partiu para a defesa da repórter, argumentando que ela "não teve a intenção".

A princípio, acredita-se que exista diferença entre intenção e gesto. Por exemplo, podemos frequentemente ter a intenção de arrancar o fígado do próximo, mas não cumprimos o gesto.
A jornalista em questão e a Fenaj, entretanto, inauguram uma nova maneira de ver o mundo e o jornalismo. Se eu não tenho a intenção de arrancar o fígado do próximo, mas vou lá e o arranco, existem bons motivos e os fins justificam os meios.

Hoje, quando vivemos sob o domínio do medo - de sequestradores, ladrões, estupradores, das crianças no faróis, da polícia, etc.- , hoje, também devemos temer os jornalistas.
Se, em 1996, sequestra-se um bebê para comprovar a falta de segurança que nos cerca, talvez em breve nos tornemos "serial killers" para escrever com sangue a verdadeira história da psicopatologia.
O talento, a técnica, a seriedade, o equilíbrio e, acima de tudo, a ética profissional passam ao largo desse tipo de jornalismo.

Mudou o mundo, mudou o jornalismo, mudamos nós, é claro, tudo que é vivo está em constante mutação. Mas perdemos algo precioso e que precisamos urgentemente resgatar, em nome dos ecos de uma talvez já longínqua história, que nos deu bravos exemplos de íntegros jornalistas - e como nos lembramos neste momento de Perseu Abramo --, de tantas corajosas lutas sindicais - e como nos lembramos daquela noite de outubro, há 21 anos, quando ao menos 300 jornalistas invadiram o auditório do sindicato de São Paulo para não permitir que o assassinato de Vladimir Herzog fosse relegado ao domínio do medo.

Eu, jornalista, me envergonho mais uma vez, e uma sacrossanta ira me atropela, em nome dessa profisão que me sustenta, em nome de companheiros vivos e mortos por ideais, em nome dos cidadãos que nos lêem e não esperam ser sequestrados ou roubados por nós, mas informados decentemente, em nome de entidades sindicais que já viveram dias mais gloriosos e dignos, em nome de editores e donos de jornais e das faculdades, que têm o dever de ensinar, de formar, de mandar para as ruas, atrás da notícia, jornalistas que não cheguem para aumentar o caos em que estamos atolados, mas para jogar um pouco de luz nessa escuridão".