Trecho de matéria publicada no Caderno 2 de OESP dia 29 de março de 1999
O País dos escritores do cotidiano
Elizabeth Lorenzotti
Por que as pessoas escrevem? "Elas escrevem para criar um mundo no qual possam viver", disse Anais Nin (1903-1977). Para a escritora francesa, trata-se de uma atividade absolutamente vital. "Escrever deve ser uma necessidade, como o mar precisa das tempestades - é a isso que eu chamo respirar."
E que necessidade é essa, que se impõe não apenas aos (oficialmente) eleitos pelas musas, mas a tantas pessoas comuns? Por que, em um País considerado iletrado, onde a tradição oral é maior que a escrita - e esta tem barreiras muitas vezes intransponíveis -, as pessoas tanto escrevem? Não a escritura obrigatória do trabalho, do estudo, mas aquela que quer voar, transcender. E quer seja boa ou má literatura, é uma viva expressão da individualidade. E quer seja pretensão, exorcismo, orgulho vão ou pura arte deseja chegar ao outro.
Tanta necessidade de criar por meio da palavra escrita resultou em concursos promovidos pelos mais variados setores, em editoras especializadas no autor que não tem espaço no restrito cânone da literatura oficial, em oficinas de literatura e até mesmo em escola de escritores.
Na Bienal Nestlé de Literatura, em seis concursos, de 1981 até 1997, inscreveram-se 49.342 mil pessoas. O volume de obras era de tal forma inadministrável que os organizadores, a partir do penúltimo evento, em 1994 (com 15 mil inscrições), mudaram o regulamento e o nome do evento para Prêmio Nestlé de Literatura, limitando as inscrições a obras já editadas. Em 1997, foram julgados 800 livros.
De cada concurso da Casa do Novo Autor, estabelecida há 11 anos no eixo Rio-São Paulo, participam cerca de 2 mil pessoas (e já foram realizados 110, que publicam cerca de 200 autores por edição). E há tantos outros concursos espalhados pelo País. Herança do grave e fundo sentimento português pelo ato de escrever?
"Também escrevemos para aprofundar o nosso conhecimento da vida", dizia Anais Nin, consagrada especialmente pela exploração do mundo interior feminino em seus sete volumes de diários. "Escrevemos para aprender a falar com os outros, para testemunhar nossa viagem no labirinto; para abrir, expandir nosso mundo quando nos sentimos sufocados, oprimidos ou abandonados."
Escrita cotidiana - Abandonado, Raimundo Arruda Sobrinho, de 60 anos, mora no canteiro central da Rua Pedroso de Morais, esquina com a Praça Hernâni Braga, no Alto de Pinheiros, em São Paulo. Sentado em um banco, Raimundo fica ali, escrevendo, a maior parte do dia, todos os dias, há seis anos. Escravizado psiquicamente, como se define, diz que escreve o que precisa. "Não quero ser lido nem quero ler ninguém", proclama, fechando rapidamente a capa que cobre seus escritos.
Para quem escreve? "Escrevo para mim." E o que faz com a produção de todos esses anos? "Não interessa", rebate, ríspido. Quer saber por que tantas perguntas, é informado que se trata de uma pesquisa com pessoas que, como ele, gostam de escrever. " Vou processar todos, então tem gente me imitando?", esbraveja.
Quando se acalma, classifica a escrita em três tipos: a vulgar ( aquela do dia-a-dia), a profissional (de jornalistas, tabeliães, etc.) e a artística (dos poetas, dos escritores). "A minha é a escrita vulgar", diz Raimundo. Vai abrindo a capa que cobre os escritos - sim, ele quer que alguém leia - e surge uma minúscula brochura artesanal, sob o título O Condicionado. O texto, em boa caligrafia, bem construído, é o início de um ensaio sobre quanto as pessoas desconhecem a mente.
"Tudo conspira contra mim", queixa-se Raimundo. "Para escrever, tenho de enfrentar a sonolência, a caneta que falha e a chuva."
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