sexta-feira, outubro 30, 2009

Genis do século XXI

El sueño de la razón produze monstruos (1797-1799)
Goya

Dia desses estava, com amigos que estudaram comigo na ECAUSP, no século passado, vendo nossas fotos em branco e preto: lembranças, risos, bons e maus tempos, velhos amigos.
Numa delas, uma garota com um superminivestido me chamou a atenção. Não me lembrava como eram tão curtas nossas saias, mas os colegas sim. Entretanto, debaixo da ditadura militar, nunca houve nenhum escândalo, agressão, desrespeito coletivo, violência contra uma colega como o que aconteceu com a moça loira de olhos verdes da Uniban, em São Bernardo, dia 22 de outubro, noticiada dia 30, após a postagem do vídeo na internet.

Mas, na segunda metade do século XX nós vivíamos a Utopia. Saias curtas, cabelos longos, acreditávamos na mudança. Easy Rider é um dos filmes emblemáticos daquela geração, e seu final já acenava para os tempos que viriam. E eles chegaram mais depressa do que se imaginava, ao avesso do que se sonhava.

O prédio onde funciona a Uniban é o mesmo onde durante muitos anos esteve instalado o Centro de Pesquisas da então Ford Brasil. Coincidentemente, o campus norte desta universidade, na Avenida Braz Leme, em Santana, funciona no prédio de uma ex-revendedora de automóveis. Quando passei por lá, outro dia, fiquei pensando em como se pode substituir carros por alunos, mantendo a mesma arquitetura.
Uma metáfora que pode esclarecer muito sobre os rumos do ensino no país, desde o famigerado projeto MEC-Usaid, de fins dos anos 1960, contra o qual os estudantes brasileiros engajados muito lutaram. Esse projeto preparava a entrada do ensino particular que, 40 anos depois, deu no que deu.
Claro que nada é isolado, e o afluxo da sociedade de massas, da sociedade de consumo, e mais recentemente do neoliberalismo constitui o chamado caldo de cultura para o mundo no qual tentamos sobreviver.

O saudoso cineasta, pensador e poeta libertário Pier Paolo Pasolini, homossexual assassinado nos anos 1970, já alertava em um contundente artigo: “O verdadeiro fascismo dos tempos atuais é o consumo, que está entranhado na alma das pessoas”.
Assim como a pensadora Hannah Arendt: “A atitude de consumo condena à ruína tudo em que toca”.
Aliado à mídia, ao desgoverno das famílias, que se reproduzem a esmo sem condições de educar os filhos , legando a responsabilidade às escolas (atenção, estou me referindo a estratos da população que têm filhos na escola e trabalham fora) a sistemas político-econômico-sociais baseados na exploração do trabalho e no lucro, e consequentemente na devastação dos recursos naturais, ao lado de grandes fortunas e de países que consomem o dobro do que pode suportar o planeta, não se pode esperar mais do que espetáculos de esquizofrenia, prepotência, destemperos universais.

A banalidade do mal instaurou-se, conforme refletia Hannah Arendt a respeito do nazismo.

Se, na essência, nada disso na história humana é novidade, o novo é que hoje somos bilhões e sabemos de tudo o que ocorre na vizinhança e no mundo todo. O que deveria ser bom, aliás, para uma humanidade saudável, mas se trata de uma civilização doente.

Nas universidades públicas, instala-se o reinado da produtividade, onde as publicações independentemente da qualidade do trabalho, são exigidas. Professores que não publicam são afastados, não importa se dedicados e produtivos no ensino. Quantidade é a palavra de ordem. Alunos do ensino superior são instados a se mestrar, doutorar, pós-doutorar, ainda muito jovens e sem experiência de vida, em função do mercado de trabalho.
Universidades não são locais de saber, mas de futura colocação. Ramos do conhecimento que dão dinheiro podem ser fisicamente explicitados já a partir das instalações onde estes cursos se dão. Na Universidade de São Paulo, é patente a diferença, por exemplo, entre o prédio da Faculdade de Economia e Administração, suntuoso, e por exemplo a Faculdade de Letras, onde cãezinhos vira-latas dão as boas vindas a quem entra no prédio, embora em reforma, absolutamente decadente, de pisos esburacados e paredes idem.
A situação não era muito melhor na década de 1970, em plena ditadura, que instalou uma academia de polícia na entrada da USP, e colocou os cursos de humanidades, transferidos do centro da cidade, em barracões improvisados na Cidade Universitária, durante muitos anos.
Cenas de vandalismo não ocorrem apenas no ensino privado: universidades públicas várias já viveram episódios dantescos de trotes violentos, até com mortes. Tem para todos.
O comportamento desrespeitoso de muitos universitários em classes, saindo e entrando, atendendo celulares, conversando alto, destratando professores é corriqueiro. No ensino fundamental e no colegial o problema é pior. Generalizar é perigoso, mas é certo que a balança pende para o destempero.

Em um mundo assim posto, qual a saída? Drogas, sexo, violência de classe e individual, um panorama muito além de todas as previsões de Huxleys e Orwells e etc.
Voltando ao episódio da aluna loira de olhos verdes –“ trajada inadequadamente para a escola, puta, provocadora, gostosa” – eu me lembrei da foto da nossa colega de mini vestido do mesmo tamanho do dela, nos anos 1970.
Lembrei-me das nossas minis, na faculdade. Lembrei-me de uma moda Mary Quant, de shorts, meia de nylon, botas e casacão. Lembrei-me , principalmente, de que essa era uma das faces da mudança mundial de comportamento, mulheres à frente, e de conquistas que hoje sequer são consideradas frutos de lutas por quem veio depois e encontrou muitos caminhos abertos.Porque a História não é ensinada. E tudo foi antropofagizado pelo consumo.

No século 21, permissivo para sexo e drogas e violência de classe na real e no virtual, na escola, na rua e nas telas, quando o consumo incita a sensualidade desde a mais tenra idade , esse poder destrutivo é muito mais visível e palpável do que os esforços daqueles que tentam manter a sanidade da sociedade por meio de organismos coletivos ou não, e de atitudes solidárias. E não se fale em medievalismo, mesmo porque depois veio o Século das Luzes e nós, o que podemos esperar?
Um filme em cartaz The Third Wave (A Onda), baseado em fato real ocorrido na Califórnia em 1967, relata a experiência de um professor reproduzindo a estrutura que levou Hitler e seu partido ao poder. A classe e o professor inclusive mudam radicalmente de comportamento.

Atenção, que tudo é perigoso! É preciso estar atento e forte!

Os uivos do vídeo da universidade, o morto num carrinho de supermercado no Rio, as guerras civis cotidianas, surdas ou declaradas pelo mundo, o hospital de Santos que enganava pacientes de câncer que pensavam estar sendo submetidos à radioterapia mas não, o médico responsável ordenou que não fosse ligada a máquina, e seria até melhor para eles, pois eram terminais...filhos e filhas matando pais, avós; pais espancando e matando filhos, alunos agredindo professores, crianças e seus violentíssimos brinquedos, trabalho escravo, talebans e klu-klux-klans (hoje com outros nomes), imigrantes deportados, corrupção mundial, desvio de leite de criancinhas, grandes corporações e seus lobbies promíscuos nos governos, tantas famílias despejadas e sem destino.
Humanidade em mais uma encruzilhada.
Não, não são animais de um e de outro lado. São humanos.Somos humanos demonstrando tudo aquilo de que somos capazes, para o bem e para o mal.