domingo, outubro 05, 2008

Não te amo mais

Peter Scheier-1950
Cortiço do Brás


Laisses-moi devenir

L’ombre de ton ombre

L’ombre de ta main

L’ombre de ton chien

Ne me quittes pas

Ne me quites pas

Ne me quittes pas

Jacques Brel


Quando deixei de me apaixonar pela minha cidade? Desde que andávamos a pé pelo Viaduto do Chá, estudantes de colégio estadual, para ouvir as conversas dos outros?

E para estudar na Biblioteca Municipal? E depois, um passeio pela Consolação com São Luiz, entrando no Cha Mon e pedindo cafezinho para quatro: aqui não servimos cafezinho meninas.

Mas quando, quando foi? E mais tarde, os passeios noturnos, sempre a pé, vindas de ônibus da distante zona norte para o maravilhoso, então, centro da cidade: cantinas com toalhas xadrez nas mesas, vinho, spaghetti, risos, beijos sob o viaduto, lágrimas, amores vãos.

O apartamento no bairro operário, a ex-fábrica de tijolos aparentes em frente à janela, o baú com tantos escritos, mesmo ainda tão jovem: Largo do Pari.

E antes, o Brás. Ex-italiano, já se tornando nordestino. Lar dos avós italianos e bisavós portugueses, da mãe. Rua Catumbi, rua Cavalheiro, passei ontem por lá, noite, não mais a pé... Rua Cavalheiro que imaginava vasta, como minha avó Julia dizia- mas é tão pequenina, quase um beco.

E casas ainda restam, tão velhas. Moradias em cortiços na rua Marcos Arruda, onde a tia Judith com seus 20 anos criava dois filhos sem brinquedos, enterrava uma menina e tinha de lavar, todo santo dia, privadas coletivas. Hoje ainda são as casinhas ali, não mais a farmácia da esquina, não mais as cadeiras nas calçadas.

Mas quando deixei de me apaixonar, eu que nem conhecia esse lado do Brás dos trabalhadores italianos,e espanhóis e portugueses e brasileiros todos, e tantos? Nem tinha nascido.

Que nostalgia esta, então, ao passar por essas ruas do bairro histórico e tão abandonado, numa noite de sexta? Lá onde ainda se vêem velhos pelas ruas, muitos.

Onde ainda há portões e jardins, escondidos alguns. A casa mais bela, na esquina da rua Martim Francisco, que emoção essa ao ver, sobrado grande de tijolinhos aparentes, jardim, luzes acesas, quartos com varandas. E parece, uma lareira talvez.

Numa travessa, um estreito corredor fechado por um portão. Uma espécie de vila, com casinhas ao lado direito de quem entra, algumas reformadas, outras iguais ao que eram quando foram construídas, mais de 50, 60 anos e é como uma outra cidade, não essa, tão avoada, que Deus te proteja de seus perigos, me diz a tia Judith lá das Minas Gerais.

(Quem bom que a gente pôde mudar daquele cortiços, ela me diz hoje, que sorte ter a família se mudado para a outra cidade escondida no meio das montanhas).

E de longe ouço os ecos do português italianado: que sputza, dizia minha mãe. (Que não era filha de italianos, mas de brasileiros descendentes de portugueses e de índios, na árvore distante). O sangÜE -- dizia a vô Maria --italiana, mãe do pai. A comida forTífica, mangia que fa benne).Marchejani, ela era de lá, da região de Marchi.

Mesmo hoje, mesmo sendo outro bairro, embora o mesmo, e eu sendo outra, embora a mesma, bate tanto sentimento. E se “o sentimento é tudo”, como descobre o Fausto de Goethe, é preciso ser forte o bastante para não transformá-lo num roteiro de filme de quinta categoria.

Mas do bairro onde me criei , no alto do morro - e sempre acabo morando em altos de morros, como verificou meu amigo cartunista/carteiro Eton - da zona norte, não tenho saudades. Lá, da lama que se formava durante as chuvas, das galochas que tínhamos de usar sobre os sapatos para chegar ao asfalto, de lá não há como sentir saudades.

A não ser do luminoso colégio estadual que salvou muitas de nossas pequenas cabecinhas.

Mas eu ainda amava minha cidade, mesmo assim. Fora daquele bairro, eu queria sair daquele bairro, queríamos atravessar o rio Tietê -- não como ele, o garoto filho de árabes, que desejava o glamour e a grana dos Jardins. E foi.

Queríamos o cinema, o teatro, a biblioteca, a livraria, o jornal. (E fomos ). Que estavam, sim, do outro lado do rio ( em que margem?)

Amava o Vale, o prédio dos Correios, o Largo de São Bento, a Praça do Patriarca, a loja que vendia bombons. O grande magazine em frente ao Teatro Municipal, onde entramos muitos, mas muitos anos depois.

Na Vila Maria Zélia, moradias criadas pelo industrial Jorge Street para seus operários da fábrica de tecidos, linda, devastada, entrei para escrever uma reportagem, tantos e tantos anos depois.

Cacos de uma era.

Ex-vilas operárias ainda resistem, reformadas, ruas fechadas por particulares. E sobradinhos, característicos da cidade que se verticalizava tão cedo, espaço ficando caro.

Por que tanto me tocam o coração:

--estátuas de santinhos às varandas, também chamadas de alpendres, iluminadas por uma lampadinha;

--ladrilhos com quadrinhos pendurados- Deus guarde nosso lar; Feliz foi Adão, que nunca teve sogra e nem caminhão;

--andorinhas de louça num vôo estático, pregadas;

--e a Santa Ceia.

Minha casa minha casinha, dizia a vó Julia, não troco por um palácio.

Não sei mesmo quando meu amor pela minha cidade se acabou.

Quando ela me deixou? Naquele arremedo de hospital público onde morreu minha mãe, eu sei. Quando talvez a jovem médica residente tenha “diminuído o investimento”-que é como eles chamam os aparelhos. Quando eu urrava pelas ruas saindo do Incor, e todos olhavam, lá onde minha mãe não conseguiu uma vaga na UTI, ficou num puxadinho de um pronto socorro improvisado.

E onde mais?

Nos dois semáforos onde, no mesmo dia,em horários diferentes, vieram os meninos: um me roubou, o outro acreditou que eu não tinha mais nada e se foi?

Na Avenida Brasil quando um menino com os braços escondidos nas mangas (subentendendo uma arma?) queria dinheiro, a voz se fazendo de grossa. Não tenho, eu disse, mas tenho essas balas e ele abriu as mãos desarmadas e levou as balas?

Como deixar de tremer e de chorar, sem mais paixão, apenas a dor?