Escrevi esta matéria para a edição de agosto da revista Panorama Editorial
Ele é um dos maiores intelectuais do país e completou 90 anos no dia 24 de julho. Embora afirme que “quase nonagenário, não posso dizer coisas novas”, acompanhar a linha de pensamento deste professor de tantas e tantas gerações é sempre um exercício enriquecedor e esclarecedor.
Escolhido para receber o troféu Juca Pato de Intelectual do Ano de 2007, Antonio Candido de Mello e Souza foi considerado "uma das inteligências mais completas e influentes da cultura brasileira contemporânea" e "autor de várias obras de análise, interpretação e avaliação crítica do principal acervo literário do Brasil e da herança européia”.
Mas para além de sua grande obra, Candido é um homem simples e generoso, bem humorado e humano. Um mineiro nascido no Rio, ele mesmo se define-criado em Cássia e em Poços de Caldas onde seu pai, o médico Aristides de Mello e Souza, foi o primeiro diretor das Termas Antonio Carlos.
Nasceu e cresceu em casas cheias de livros, o pai e a mãe tinham bibliotecas separadas, não só de medicina, mas de literatura, história, filosofia. Em 1989, Candido e seus irmãos Roberto e Miguel doaram 3.528 livros à Biblioteca Central da Unicamp, mediante o pedido de que a coleção ganhasse o nome do pai. A maioria dos livros pertencia ao professor.
Quando era criança, o pai costumava ler e explicar todas as noites, depois do jantar, certos textos em português ou francês que julgava oportunos. Entre 13 e 14 anos Candido ouviu o pai ler muito de Os Sertões, na primeira edição que possuía.
Ele aponta a estadia em Paris- para onde o pai foi se aperfeiçoar, entre 1928 e 1929 e a ida, em 1930, para Poços de Caldas “que contava com uma livraria excelente, com livros franceses e ingleses além dos nacionais”, como pontos importantes de sua formação. Cândido tornou-se freguês assíduo. Conta o professor que “foi ela a única, em toda a minha vida, onde vi à venda o raríssimo Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade, cuja tiragem foi mínima e quase não circulou”.
Com acontecia muito naquela época, Candido não freqüentou escola regular no primário, apenas três meses. A mãe o ensinou em casa: a ler, a escrever, aritmética, geografia, história, um pouco de francês. Em Poços fez o quinto ano primário, chamado "curso de admissão" ao ginásio.
Além de sua mãe e de uma professora na França, houve outra pessoa que muito ensinou o jovem Candido: dona Teresina Carini Rocchi, de quem escreveu a biografia no livro Teresina e etc. (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980).
A velha militante anarquista era amiga da mãe de Candido. “Ela me iniciou no mundo da cultura italiana além de contribuir para o meu interesse pelo socialismo. Cantávamos juntos canções e trechos de ópera, ela me fez ler muitos autores italianos cujos livros me dava e em geral falava italiano comigo”.
O pai queria que ele fosse médico, mas segundo ele mesmo, “graças a Deus”, foi reprovado nos exames para a Faculdade de Medicina. Em 1939 entrou no vestibular para as faculdades de Direito e Filosofia. Não terminou o curso de Direito, porque foi nomeado professor-assistente de Filosofia e casou-se com sua companheira da vida inteira, Gilda de Mello e Souza, falecida em 2005. Ela fazia parte do grupo de colegas, também amigos da vida inteira, desde os bancos da faculdade, com os quais fundou a revista Clima, na época da Segunda Guerra.
Era uma revista de cultura, feita por jovens universitários, praticamente a mesma equipe que depois fundou e colaborou com o Suplemento Literário do jornal O Estado de S. Paulo e tornou-se conhecida como a primeira geração de críticos saídos da USP. Ele conta: “Nós temos consciência de nos termos formado uns aos outros: Antônio Branco Lefèvre, estudante de medicina e depois jovem médico naquela altura, que se tornou um dos maiores neuropediatras do Brasil, foi crítico de música da revista; Lourival Gomes Machado era professor de política e ao mesmo tempo crítico de artes plásticas, tendo reorganizado a Faculdade de Arquitetura como diretor; Décio de Almeida Prado, ensinava filosofia no Colégio Universitário e era crítico de teatro; Rui Coelho, que tinha um saber universal, era especialista em personalidade e cultura, professor de sociologia, praticante do teste de Rorscharch, mas escreveu um livrinho sobre Proust e foi crítico de cinema. A nossa turma era assim”.
Um dos seus mais belos e importantes textos chama-se O direito à literatura,
O professor fala, no texto, sobre o poder universal dos grandes clássicos, “que ultrapassam a barreira da estratificação social e de certo modo podem redimir as distâncias impostas pela desigualdade econômica, pois têm a capacidade de interessar a todos e devem ser levados ao maior número”.
“Lembro de ter conhecido na minha infância, em Poços de Caldas, o velho sapateiro italiano Crispino Caponi, que sabia o Inferno completo e recitava qualquer canto que se pedisse, sem parar de bater as suas solas”.
Para Candido, a literatura “humaniza em sentido profundo, porque faz viver”.
E o que entende ele por humanização?“ O processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso de beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante”.
O Brasil é feliz por contar com Antônio Candido.