terça-feira, setembro 02, 2008

Candido: O direito à literatura

Foto Jornal da Unicamp


Escrevi esta matéria para a edição de agosto da revista Panorama Editorial

Ele é um dos maiores intelectuais do país e completou 90 anos no dia 24 de julho. Embora afirme que “quase nonagenário, não posso dizer coisas novas”, acompanhar a linha de pensamento deste professor de tantas e tantas gerações é sempre um exercício enriquecedor e esclarecedor.

Escolhido para receber o troféu Juca Pato de Intelectual do Ano de 2007, Antonio Candido de Mello e Souza foi considerado "uma das inteligências mais completas e influentes da cultura brasileira contemporânea" e "autor de várias obras de análise, interpretação e avaliação crítica do principal acervo literário do Brasil e da herança européia”.
Mas para além de sua grande obra, Candido é um homem simples e generoso, bem humorado e humano. Um mineiro nascido no Rio, ele mesmo se define-criado em Cássia e em Poços de Caldas onde seu pai, o médico Aristides de Mello e Souza, foi o primeiro diretor das Termas Antonio Carlos.

Nasceu e cresceu em casas cheias de livros, o pai e a mãe tinham bibliotecas separadas, não só de medicina, mas de literatura, história, filosofia. Em 1989, Candido e seus irmãos Roberto e Miguel doaram 3.528 livros à Biblioteca Central da Unicamp, mediante o pedido de que a coleção ganhasse o nome do pai. A maioria dos livros pertencia ao professor.

Quando era criança, o pai costumava ler e explicar todas as noites, depois do jantar, certos textos em português ou francês que julgava oportunos. Entre 13 e 14 anos Candido ouviu o pai ler muito de Os Sertões, na primeira edição que possuía.

Ele aponta a estadia em Paris- para onde o pai foi se aperfeiçoar, entre 1928 e 1929 e a ida, em 1930, para Poços de Caldas “que contava com uma livraria excelente, com livros franceses e ingleses além dos nacionais”, como pontos importantes de sua formação. Cândido tornou-se freguês assíduo. Conta o professor que “foi ela a única, em toda a minha vida, onde vi à venda o raríssimo Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade, cuja tiragem foi mínima e quase não circulou”.

Com acontecia muito naquela época, Candido não freqüentou escola regular no primário, apenas três meses. A mãe o ensinou em casa: a ler, a escrever, aritmética, geografia, história, um pouco de francês. Em Poços fez o quinto ano primário, chamado "curso de admissão" ao ginásio.

Além de sua mãe e de uma professora na França, houve outra pessoa que muito ensinou o jovem Candido: dona Teresina Carini Rocchi, de quem escreveu a biografia no livro Teresina e etc. (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980).

A velha militante anarquista era amiga da mãe de Candido. “Ela me iniciou no mundo da cultura italiana além de contribuir para o meu interesse pelo socialismo. Cantávamos juntos canções e trechos de ópera, ela me fez ler muitos autores italianos cujos livros me dava e em geral falava italiano comigo”.

O pai queria que ele fosse médico, mas segundo ele mesmo, “graças a Deus”, foi reprovado nos exames para a Faculdade de Medicina. Em 1939 entrou no vestibular para as faculdades de Direito e Filosofia. Não terminou o curso de Direito, porque foi nomeado professor-assistente de Filosofia e casou-se com sua companheira da vida inteira, Gilda de Mello e Souza, falecida em 2005. Ela fazia parte do grupo de colegas, também amigos da vida inteira, desde os bancos da faculdade, com os quais fundou a revista Clima, na época da Segunda Guerra.

Era uma revista de cultura, feita por jovens universitários, praticamente a mesma equipe que depois fundou e colaborou com o Suplemento Literário do jornal O Estado de S. Paulo e tornou-se conhecida como a primeira geração de críticos saídos da USP. Ele conta: “Nós temos consciência de nos termos formado uns aos outros: Antônio Branco Lefèvre, estudante de medicina e depois jovem médico naquela altura, que se tornou um dos maiores neuropediatras do Brasil, foi crítico de música da revista; Lourival Gomes Machado era professor de política e ao mesmo tempo crítico de artes plásticas, tendo reorganizado a Faculdade de Arquitetura como diretor; Décio de Almeida Prado, ensinava filosofia no Colégio Universitário e era crítico de teatro; Rui Coelho, que tinha um saber universal, era especialista em personalidade e cultura, professor de sociologia, praticante do teste de Rorscharch, mas escreveu um livrinho sobre Proust e foi crítico de cinema. A nossa turma era assim”.

Um dos seus mais belos e importantes textos chama-se O direito à literatura, em Vários Escritos (São Paulo, Duas Cidades, 1995). Ele a coloca entre os direitos fundamentais.

O professor fala, no texto, sobre o poder universal dos grandes clássicos, “que ultrapassam a barreira da estratificação social e de certo modo podem redimir as distâncias impostas pela desigualdade econômica, pois têm a capacidade de interessar a todos e devem ser levados ao maior número”.

“Lembro de ter conhecido na minha infância, em Poços de Caldas, o velho sapateiro italiano Crispino Caponi, que sabia o Inferno completo e recitava qualquer canto que se pedisse, sem parar de bater as suas solas”.

Para Candido, a literatura “humaniza em sentido profundo, porque faz viver”.

E o que entende ele por humanização?“ O processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso de beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante”.

O Brasil é feliz por contar com Antônio Candido.




Candido: O prazer de ler

Eu perguntei ao professor o que recomendaria para despertar o gosto pela leitura em um adolescente de hoje, não muito interessado pelas letras. Ele respondeu:
“No meu tempo eu saberia indicar, hoje eles gostam de Harry Potter, que nem sei o que é, e tenho medo de parecer bobo”.
Mas não parecerá bobo jamais quem recomenda clássicos universais para os jovens.
Na época da Segunda Guerra, Candido foi professor de um colégio alemão que se desnasificava. “Eu conquistei os alunos com As Minas do Rei Salomão, do inglês, Henry Rider Haggard, traduzido por Eça de Queiroz. (Livros Horizonte, Lisboa, 2000) Eles resistiam à leitura e adoraram. Tudo depende da forma como se apresenta o livro”, afirma.
Sim, e como lembra a ex-aluna Telê Ancona Lopez, Candido ensinava a importância fundamental do texto, valorizando a imaginação crítica, a cultura. “Quando se estuda a literatura brasileira, se vê ao mesmo tempo as correlações com as artes, a música. A literatura não se isola”. Esta é uma grande forma de despertar nas pessoas o prazer de ler.
Livros de aventuras despertam o prazer da leitura, diz o professor que, quando moço adorava a coleção Terra, Mar e Ar, com Kipling, Mark Twain, as aventuras de Tarzan, de Tom Sawyer, A Volta ao mundo em 80 dias, e tantas outras.
Ele indica todos os livros de Alexandre Dumas, de Os três mosqueteiros e O Conde de Monte Cristo, a Vinte anos depois.
E lembra-se do método que o pai usava para aproximar os filhos da leitura: “Por exemplo: um belo dia, quando eu tinha mais ou menos nove anos, meu irmão do meio, sete, e o caçula, seis, ele nos deu os dois volumes alentados do Larousse universal, dizendo: "brinquem com isto". E nós começamos a brincar, a ver as pranchas coloridas com mapas, uniformes, mamíferos, répteis, borboletas, peixes etc. Depois de passar um ano colorindo perucas de personagens históricos, pondo bigodes em imperadores romanos, cavanhaque em Luís XIV e coisas assim, tínhamos adquirido bastante familiaridade com muitos verbetes e aprendido um pouco de francês, reforçado pelas lições de minha mãe com o método Berlitz”.
Antonio Candido não é pessimista em relação à moderna cultura do audiovisual. Acentua que na nossa maior fonte cultural, a civilização grega, as obras eram feitas para serem ditas ou cantadas, o registro escrito vinha depois. Talvez a imagem e a oralidade possam imperar nesta terceira revolução industrial, mas ele não consegue imaginar.
Entretanto, afirma que uma coisa é certa: “Não é possível haver sociedade humana sem arte e sem literatura, pois o homem tem necessidade quotidiana, imperiosa e inadiável de satisfazer a fantasia, desde as formas mais modestas, como a anedota e os grafitos, até as mais altas, como o poema organizado e a estátua. Mas em nosso tempo de crise das normas, a mistura de tudo parece ter gerado a dissolução dos parâmetros, de modo que numa exposição de arte, por exemplo, ficamos sem saber se um trator em cima de um monte de jornais pode ser avaliado como se avalia um quadro de Picasso ou uma estátua de Moore”.

Candido:“Sou essencialmente um professor”

“Se me perguntassem o que sou essencialmente, eu diria, grifando, que sou professor. Ensinei sociologia, ensinei literatura, mas antes de ser professor disso ou daquilo, não sei se me faço entender, sou visceralmente professor,grifado. Tenho gosto e vocação para transmitir aos outros o que sei, e como costumava dizer Antônio de Almeida Júnior, o professor não é obrigado a criar saber, mas sim a transmiti-lo. Esta foi a tarefa que sempre me atribuí. (.) Repito: o que gosto mesmo é de dar aula. Se possível, sem ser interrompido”.
(Antonio Candido em entrevista concedida em junho de 1993 a Gilberto Velho e Yonne Leite, do Museu Nacional da UFRJ).

Antonio Candido formou várias gerações de estudantes de Letras em 36 anos de docência em Teoria Literária e Literatura Comparada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Quando se viaja pelo país, por exemplo, participando de algum evento nesta área, encontra-se sempre alunos formados por ele na graduação, no mestrado, no doutorado, ou em cursos de especialização. Alguns, por exemplo, daqui de São Paulo, como Roberto Schwarz, Telê Ancona Lopes, Vera Chalmers, Marisa Lajolo, Davi Arrigucci Jr, Walnice Nogueira Galvão, entre outros.
Marisa Lajolo, atualmente na Universidade Mackenzie e professora colaboradora da Unicamp foi sua sua aluna da graduação, nos anos 1960, quando a disciplina Teoria Literária recém havia ingressado no currículo de Letras. Depois foi sua orientanda na pós-graduação, Mestrado e Doutorado, já nos anos 1970.
Para Marisa, “Antonio Cândido é um grande professor. Mestre, no sentido maior do termo. A mim - além dos conteúdos- ensinou sobretudo respeito pelos alunos e interesse sincero por suas questões. Ele jamais humilhou nenhum aluno apesar de sua infinita sabedoria. Dava aulas de forma simples, comentava os trabalhos de cada um assinalando o que de melhor tínhamos. E - como faz até hoje- temperava tudo isso com um humor fino e inteligente”.
“É meu professor por toda a vida, sinalizou rumos no meu trabalho com a literatura”, afirma outra ex-aluna, Telê Ancona Lopez, igualmente graduada, mestrada e doutorada na USP com Antonio Candido como orientador. “Um professor que principalmente mostra em cada passo dele a valorização da ética,
a importância do intelectual-cidadão, interessado nos rumos do país, preocupado com o seu desempenho enquanto professor, enquanto critico”.
O tema de pesquisa de Telê, professora titular da USP é Mário de Andrade, de cujo arquivo é curadora no Instituto de Estudos Brasileiros, (IEB). E, claro, esse tema veio das aulas de Candido. “Eu fazia um curso de especialização em Teoria Literária com o professor, e ele começou a nos dar o poema Louvação da Tarde, contando que existia uma marginália fantástica de Mário de Andrade na Bilioteca. Eu levantei a mão e disse: “Quero fazer nas férias de julho!Imagine, estou fazendo até hoje...”
O papel do intelectual-cidadão também é destacado por Vera Chalmers, professora convidada da Unicamp: ”“Antonio Candido é um mestre no sentido pleno da palavra, um formador de pessoas a quem ensina a buscar a verdade, ainda que difícil”.
Ele formou não só grandes intelectuais e professores. Como sempre acontece, muitos de seus ex-alunos de Letras seguiram outras profissões, mas levaram seus ensinamentos pela vida afora. Como a assessora de moda Sonia Montana, sua aluna de graduação na década de 1970: “O professor me ensinou coisas que usei na educação de meus três filhos”.