terça-feira, setembro 28, 2010

Um hemisfério numa cabeleira

Cabeça de Leda, Leonardo da Vinci

Charles Baudelaire
Tradução Aurélio Buarque de Holanda

Deixa-me respirar longamente, longamente, o cheiro dos teus cabelos, mergulhar neles todo o meu rosto, como um homem sedento na água de uma fonte, e agitá-los com a mão como um lenço perfumado, para sacudir recordações pelo ar.

Se pudesse imaginar tudo o que vejo! Tudo o que sinto! Tudo o que ouço nos teus cabelos! Minha alma viaja no perfume como a alma dos outros homens viaja na música.

Teus cabelos encerram todo um sonho, povoado de velas e de mastros; encerram grandes mares, cujas monções me conduzem a maravilhosos climas, onde o espaço é mais azul e mais profundo, onde a atmosfera é perfumada pelos frutos, as folhas e a pele humana.

No oceano da tua cabeleira entrevejo um porto formigante de canções melancólicas, de homens vigorosos de todas as nações, e de navios de todas as formas, cujas arquiteturas finas e complicadas se recortam num céu imenso onde se repoltreia o calor eterno.

Nas carícias da tua cabeleira reencontro os langores das longas horas passadas sobre um divã, no camarote de um belo navio, acalentadas pelo imperceptível balouçar do porto, entre as jarras de flores e as bilhas refrigerantes.

Na lareira ardente da tua cabeleira o odor do fumo se mistura com o ópio e o açúcar; na noite da tua cabeleira vejo resplandecer o infinito do azul tropical; nas margens penugentas da tua cabeleira embriago-me com os aromas combinados do alcatrão, do almíscar e do óleo de coco.

Deixa-me morder por muito tempo as tuas negras e pesadas tranças.
Quando me ponho a mordiscar os teus cabelos elásticos e rebeldes, parece-me que estou comendo recordações.

"Os tempos estão duros para o artista" (Maiakovsky,1926)


Artigo de Geneton Moraes Neto, de 1996

Faz 70 anos. Vladimir Maiakovski, o poeta russo que enfiaria um balaço no peito no dia 14 de abril de 1930, aos 36 anos, produziu, em 1926, um poema belíssimo em homenagem ao também poeta e amigo Serguei Iessienin – que se matara três dias depois do Natal de 1925. Não se sabe o que é maior ali: se a tragédia de um suicídio consumado (e outro antevisto) ou se a beleza de versos encharcados de dor e esperança.
Maiakovski passou três meses escrevendo os versos de “A Serguei Iessienin” e o aniversário do poema foi o pretexto para que uma pequena legião de fãs corresse ao Museu Maiakovski, que está se tornado um endereço cult em Moscou.
Na tradução consagrada de Haroldo de Campos, o canto de Maiakovski ao amigo morto dizia: “Por enquanto / há escória de sobra. / O tempo é escasso mãos à obra. / Primeiro / é preciso / transformar a vida, para cantá-la / em seguida. / Para o júbilo / o planeta / está imaturo. / É preciso/ arrancar alegria ao futuro. / Nesta vida / morrer não é difícil. / O difícil / é a vida e seu ofício”.
Iessienin tinha deixado, como despedida, versos belos mas desesperançados – escritos, literalmente, com sangue, num quarto do Hotel Inglaterra, em Leningrado. Depois de cortar os pulsos e escrever os versos finais, ele se enforcou.
Cinco anos depois, o próprio Maikovski se matou. O bilhete de despedida dizia: “O incidente está encerrado. O barco do amor quebrou-se contra a vida cotidiana. Estou quite com a vida. É inútil passar em revista as dores, os infortúnios e os erros recíprocos. Sejam felizes”.

O sol nasce para todos