quarta-feira, maio 12, 2010

O goleiro Barbosa: Muito mais de onze fraturas


A desgraça do goleiro Barbosa, que tomou o gol que tirou do Brasil a conquista do título, no mundial de 1950, contra o Uruguai, realizado no Maracanã, me inspirou, faz tempo, este conto. Não entendo nada de futebol, mas me fascinam alguns personagens. Especialmente os heróis do fracasso, como diz um amigo escritor, que também tem esse fraco.
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Pra ele doía muito mais que fratura. Meu amigão, colega do grupo escolar. Saudade das peladas, eu era lateral direito, ele goleiro.Parecia um gato, o camarada! Mudou pra São Paulo, trabalhava numa firma lavando vidro e lá mesmo, jogando na fábrica, foi contratado pelo Ypiranga, por volta de 1940. Ele era do 1921, o senhor faz as contas, tinha 19 anos.
No 1943, o Barbosa já era dos melhores goleiros paulistas, daí o Domingos da Guia indicou ele pro Vasco em 44, em 45 já estava no escrete brasileiro. Mas naquele 16 de julho de 50, contra o Uruguai...
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Os olhos do velho amigo, de 84 anos, se apertam.
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“Conta seu Mané”. (Eu tinha viajado a Campinas para entrevistar o amigo do goleiro para um jornal do interior do Rio.)
Tá aqui, vou ler no livro o que ele mesmo contou:“O Ghiggia avançou, eu vislumbrei o centro da área com três carrascos babando, à espera da bola. O Bigode vem atrás do Ghiggia, Juvenal tenta fazer a cobertura, mas na entrada da área só tem eles, ninguém da defesa, se ele centra não tem como pegar, é gol na certa, fico esperando Ghiggia centrar, dou um passo à frente, porque ele com certeza vai fazer a mesma jogada do primeiro gol, ele sente que eu estou fora, embora viesse de cabeça baixa como touro miúra, mete o peito do pé na bola e ainda toco nela, crente e que foi para escanteio, afinal foi um chute mascado, bateu no gramado, subiu e desceu, eu dou um passo lateral e salto para a esquerda com todo o impulso que... quando senti o estádio em silêncio total tomei coragem, olhei para trás e vi a bola de couro marrom lá dentro..."
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Ele me dizia, moço, que o silêncio acompanhava ele a vida inteira. Aqueles 200 mil torcedores calados. Que parecia a eternidade, e quando morresse não ia sentir diferença... Barbosa era um lorde. Parece que chorava pra dentro. Jamais esqueceu de uma senhora que parou ele na rua e disse pra filha:” É esse aí que traiu o Brasil” .
Mas o negrão não podia se emocionar. Dizia que queria ficar vivo, e que o sentimento mal conduzido acaba com uma pessoa. Pois então ele não carregou por 50 anos aquele silêncio? E não foi chamado no Maracanã, quando trocaram as balizas e deram pra ele, pra fazer churrasco daquelas traves onde ele se desgraçou?
Jogou até 62, quando sofreu uma lesão na virilha pelo Bonsucesso, estádio do Campo Grande. Não eram os 200 mil do Maracanã, mas uns 600, em silêncio. Aquele silêncio profundo, mas dessa vez diferente, ele contou.
“Mané, mesmo com aquela baita dor eu fiquei feliz, porque era uma coisa de respeito, de sentimento mesmo, coisa da alma”.
“Não chora, seu Mané, a vida é assim”, digo. ”E depois?”
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Bom, muita falta de dinheiro. Morreu esquecido, na Cidade Ocian, no dia 7 de julho de 2000. Fui me despedir. Sabe moço, naquele tempo ninguém usava luva. E goleiro machuca muito as mãos. Ele já tinha me contado uma vez: onze fraturas. As mãos dele, quebradinhas, cruzadas sobre o peito. Eu chorei muito, não sou como ele que chorava pra dentro, sou um manteiga derretida.