quinta-feira, abril 27, 2006

Por que as pessoas escrevem?

Trecho de matéria publicada no Caderno 2 de OESP dia 29 de março de 1999
O País dos escritores do cotidiano
Elizabeth Lorenzotti

Por que as pessoas escrevem? "Elas escrevem para criar um mundo no qual possam viver", disse Anais Nin (1903-1977). Para a escritora francesa, trata-se de uma atividade absolutamente vital. "Escrever deve ser uma necessidade, como o mar precisa das tempestades - é a isso que eu chamo respirar."
E que necessidade é essa, que se impõe não apenas aos (oficialmente) eleitos pelas musas, mas a tantas pessoas comuns? Por que, em um País considerado iletrado, onde a tradição oral é maior que a escrita - e esta tem barreiras muitas vezes intransponíveis -, as pessoas tanto escrevem? Não a escritura obrigatória do trabalho, do estudo, mas aquela que quer voar, transcender. E quer seja boa ou má literatura, é uma viva expressão da individualidade. E quer seja pretensão, exorcismo, orgulho vão ou pura arte deseja chegar ao outro.
Tanta necessidade de criar por meio da palavra escrita resultou em concursos promovidos pelos mais variados setores, em editoras especializadas no autor que não tem espaço no restrito cânone da literatura oficial, em oficinas de literatura e até mesmo em escola de escritores.
Na Bienal Nestlé de Literatura, em seis concursos, de 1981 até 1997, inscreveram-se 49.342 mil pessoas. O volume de obras era de tal forma inadministrável que os organizadores, a partir do penúltimo evento, em 1994 (com 15 mil inscrições), mudaram o regulamento e o nome do evento para Prêmio Nestlé de Literatura, limitando as inscrições a obras já editadas. Em 1997, foram julgados 800 livros.
De cada concurso da Casa do Novo Autor, estabelecida há 11 anos no eixo Rio-São Paulo, participam cerca de 2 mil pessoas (e já foram realizados 110, que publicam cerca de 200 autores por edição). E há tantos outros concursos espalhados pelo País. Herança do grave e fundo sentimento português pelo ato de escrever?
"Também escrevemos para aprofundar o nosso conhecimento da vida", dizia Anais Nin, consagrada especialmente pela exploração do mundo interior feminino em seus sete volumes de diários. "Escrevemos para aprender a falar com os outros, para testemunhar nossa viagem no labirinto; para abrir, expandir nosso mundo quando nos sentimos sufocados, oprimidos ou abandonados."
Escrita cotidiana - Abandonado, Raimundo Arruda Sobrinho, de 60 anos, mora no canteiro central da Rua Pedroso de Morais, esquina com a Praça Hernâni Braga, no Alto de Pinheiros, em São Paulo. Sentado em um banco, Raimundo fica ali, escrevendo, a maior parte do dia, todos os dias, há seis anos. Escravizado psiquicamente, como se define, diz que escreve o que precisa. "Não quero ser lido nem quero ler ninguém", proclama, fechando rapidamente a capa que cobre seus escritos.
Para quem escreve? "Escrevo para mim." E o que faz com a produção de todos esses anos? "Não interessa", rebate, ríspido. Quer saber por que tantas perguntas, é informado que se trata de uma pesquisa com pessoas que, como ele, gostam de escrever. " Vou processar todos, então tem gente me imitando?", esbraveja.
Quando se acalma, classifica a escrita em três tipos: a vulgar ( aquela do dia-a-dia), a profissional (de jornalistas, tabeliães, etc.) e a artística (dos poetas, dos escritores). "A minha é a escrita vulgar", diz Raimundo. Vai abrindo a capa que cobre os escritos - sim, ele quer que alguém leia - e surge uma minúscula brochura artesanal, sob o título O Condicionado. O texto, em boa caligrafia, bem construído, é o início de um ensaio sobre quanto as pessoas desconhecem a mente.
"Tudo conspira contra mim", queixa-se Raimundo. "Para escrever, tenho de enfrentar a sonolência, a caneta que falha e a chuva."

Borges

Na verdade, o escritor escreve sempre o mesmo livro, sob outro ângulo ou em outro tempo, em outra idade. Ulisses é uma continuação dos livros anteriores de Joyce, na mesma técnica de neologismos, mas seus contos são melhores, pois neste caso se percebe o escritor, não o filólogo. Com a passagem do tempo, um escritor descobre que as idéias devem ter uma expressão clara e precisa. Só assim criará emoções e atmosferas que ele deseja passar ao leitor. Se escrever uma palavra arcaica ou estranha no seu livro, esse termo só servirá para distrair a atenção do leitor. O ideal é uma frase em que todas as palavras tenham o mesmo valor. O leitor deve ler fluentemente, independente de assunto, seja filosofia ou metafísica.
Borges a Alberto Beutenmuller

segunda-feira, abril 24, 2006

Caio Fernando Abreu- 1

Acabo de ver na TV Cultura uma linda pequena matéria sobre ele, no programa Entrelinhas. Todos os que gostávamos de literatura e vivemos na ditadura conhecemos Caio Fernando Abreu. Principalmente pelo livro de contos Morangos Mofados, de 1982, que marcou a nossa geração.Eu o vejo, bem magro, em Porto Alegre (era gaúcho) onde foi morar, no fim, e onde morreu aos 47 anos. Diz que, se não fosse escritor, gostaria de ser jardineiro. E que plantou no seu jardim duas roseiras, uma de rosas vermelhas, Odete, em homenagem a Odete Lara, e outra, brancas, a Ligia Fagundes Telles. Amava as mulheres, especialmente as que faziam arte. Me ocorre, também, que os homossexuais, esse paradoxo, em geral amam muito as mulheres, tudo o que eles queriam ser...

Caio Fernando Abreu-2

O programa também reprisou um Roda Viva de 1991, com Rachel de Queiroz. Caio é um dos entrevistadores e diz algo que nunca se viu qualquer entrevistador fazer nesse programa, em geral laudatório. Ele diz: "Eu me sinto constrangido de estar aqui, e não quero ser constrangedor. Sinto-me constrangido por estar aqui para louvar uma pessoa da qual eu absolutamente discordo e que representa coisas que eu não prezo". Mais ou menos isso. Rachel foi comunista na juventude, tempos de " O Quinze", e mais tarde apoiou a ditadura. Foi interrompido abruptamente pelo mediador, o jornalista Jorge Escosteguy, que falou algo do tipo: você está aqui para fazer perguntas. E Caio: " Não vou fazer pergunta". Rachel, então, respondeu que vivemos em uma democracia e ela esperava que ele respeitasse suas posições. Caio falou que respeitava, sim. Então, ficou gravada para sempre a coerência desse homem, desse escritor corajoso -- porque ninguém da confraria intelectual cabocla jamais agiria assim. Ficou gravada a censura do jornalista, interrompendo a fala democrática de um participante do programa. Quanto à resposta da escritora, não tenho reparos a fazer.
Todos os três já estão mortos.

Caio e as pequenas epifanias


Esta crônica publicada no Estadão em 22 de abril de 1986 foi copiada, xerocada, passada de mão em mão. Hoje habita a internet. É uma das mais belas, delicadas e singelas da crônica brasileira, esse estilo tão nosso, tão singular deste país. Uma pérola.

Pequenas epifanias

"Dois ou três almoços, uns silêncios.Fragmentos disso que chamamos de “minha vida”. Há alguns dias, Deus – ou isso que chamamos assim, tão descuidadamente, de Deus –, enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de amor. Ou disso que chamamos, também com descuido e alguma pressa, de amor. E você sabe a que me refiro.Antes que pudesse me assustar e, depois do susto, hesitar entre ir ou não ir, querer ou não querer – eu já estava lá dentro. E estar dentro daquilo era bom. Não me entenda mal – não aconteceu qualquer intimidade dessas que você certamente imagina. Na verdade, não aconteceu quase nada. Dois ou três almoços, uns silêncios. Fragmentos disso que chamamos, com aquele mesmo descuido, de “minha vida”. Outros fragmentos, daquela “outra vida”. De repente cruzadas ali, por puro mistério, sobre as toalhas brancas e os copos de vinho ou água, entre casquinhas de pão e cinzeiros cheios que os garçons rapidamente esvaziavam para que nos sentíssemos limpos. E nos sentíamos.Por trás do que acontecia, eu redescobria magias sem susto algum. E de repente me sentia protegido, você sabe como: a vida toda, esses pedacinhos desconexos, se armavam de outro jeito, fazendo sentido. Nada de mal me aconteceria, tinha certeza, enquanto estivesse dentro do campo magnético daquela outra pessoa. Os olhos da outra pessoa me olhavam e me reconheciam como outra pessoa, e suavemente faziam perguntas, investigavam terrenos: ah você não come açúcar, ah você não bebe uísque, ah você é do signo de Libra. Traçando esboços, os dois. Tateando traços difusos, vagas promessas.Nunca mais sair do centro daquele espaço para as duras ruas anônimas. Nunca mais sair daquele colo quente que é ter uma face para outra pessoa que também tem uma face para você, no meio da tralha desimportante e sem rosto de cada dia atravancando o coração. Mas no quarto, quinto dia, um trecho obsessivo do conto de Clarice Lispector – Tentação – na cabeça estonteada de encanto: “Mas ambos estavam comprometidos. Ele, com sua natureza aprisionada. Ela, com sua infância impossível”. Cito de memória, não sei se correto. Fala no encontro de uma menina ruiva, sentada num degrau às três da tarde, com um cão basset também ruivo, que passa acorrentado. Ele pára. Os dois se olham. Cintilam, prometidos. A dona o puxa. Ele se vai. E nada acontece.De mais a mais, eu não queria. Seria preciso forjar climas, insinuar convites, servir vinhos, acender velas, fazer caras. Para talvez ouvir não. A não ser que soprasse tanto vento que velejasse por si. Não velejou. Além disso, sem perceber, eu estava dentro da aprendizagem solitária do não-pedir. Só compreendi dias depois, quando um amigo me falou – descuidado, também – em pequenas epifanias. Miudinhas, quase pífias revelações de Deus feito jóias encravadas no dia-a-dia.Era isso – aquela outra vida, inesperadamente misturada à minha, olhando a minha opaca vida com os mesmos olhos atentos com que eu a olhava: uma pequena epifania. Em seguida vieram o tempo, a distância, a poeira soprando. Mas eu trouxe de lá a memória de qualquer coisa macia que tem me alimentado nestes dias seguintes de ausência e fome. Sobretudo à noite, aos domingos. Recuperei um jeito de fumar olhando para trás das janelas, vendo o que ninguém veria.Atrás das janelas, retomo esse momento de mel e sangue que Deus colocou tão rápido, e com tanta delicadeza, frente aos meus olhos há tanto tempo incapazes de ver: uma possibilidade de amor. Curvo a cabeça, agradecido. E se estendo a mão, no meio da poeira de dentro de mim, posso tocar também em outra coisa. Essa pequena epifania. Com corpo e face. Que reponho devagar, traço a traço, quando estou só e tenho medo. Sorrio, então. E quase paro de sentir fome.

domingo, abril 09, 2006

When I'm 64!

Do Bebeto, o maior fã deles:

"Falar dos Beatles é falar de nossa história pessoal. Cada detalhe, cada gesto, música, ou fato desses então rapazes na década de 60 ficaram marcados em nossas vidas e memórias, para sempre.Feliz daqueles que viveram sob a influência da música dos Beatles e de todas as demais bandas da geração British Invasion. Não vou fazer nenhuma apologia e nem comparações com outros ídolos. É impossível comparar.
Esta crônica da Beth parece tão espontânea e tão natural, digna de quem vive todos os dias com Paul como ainda vivemos. Tomar chá com Paul que é exatamente como aí está. Dos Fab Four, Paul sempre foi o mais apaixonado pelo que faz e continua um cara simples e ainda apaixonado pelo “old and good rock´n roll”.
Yes, vamos tomar um chá com Paul McCartney, principalmente no dia 18 de junho deste ano, pois será uma data mais especial que nos outros anos, para todos nós. Paul completará 64 anos e poderemos relembrar Vera, Chuck and Dave.SIM, he got older, mas não perdeu o cabelo.
Se tenho um sonho de beatlemanáico ? Claro que tenho dentre muitos é o de comemorar os meus 64 anos com Paul . Ainda está um pouco longe este dia , mas será um Magical Mystery Tour . Vida longa, Paul. "

quinta-feira, abril 06, 2006

Cidade triste

Triste Bahia
musica Caetano Veloso/letraGregório de Matos


Triste Bahia, oh, quão dessemelhante…

Estás e estou do nosso antigo estado
Pobre te vejo a ti, tu a mim empenhado
Rico te vejo eu, já tu a mim abundante
Triste Bahia, oh, quão dessemelhante
A ti tocou-te a máquina mercante
Que em tua larga barra tem entrado
A mim vem me trocando e tem trocado
Tanto negócio e tanto negociante


No cruzamento da Brasil com Rebouças, veio um menino de uns 10 anos na minha janela , com a mão direita escondida. Queria dinheiro, celular, etc.Eu não via a mão, se tinha arma ou não. Disse pra ele que não tinha, mas ia dar uns doces. Ele abriu as duas mãos, agradeceu e foi embora com uns docinhos de leite que eu tinha deixado no carro justamente pra dar pras crianças.
Fiquei tremendo o resto do caminho.
Cidade triste.
De manhã, deu no jornal que o MV Bill, aquele do documentário “Falcão, os meninos do tráfico” lançou seu livro na Daslu.
O documentário que não vi mostra o cotidiano de 17 meninos recrutados pelo tráfico de drogas: 16 já tinham morrido quando o documentário foi exibido e o país se horrorizou (!).
A Daslu colabora com a Central Única de Favelas.
Bill disse que a culpa é do passado escravocrata.
Eliana Tranchesi, a dona, aquela da sonegação fiscal, disse: “Estamos aqui para juntar todos, ricos e pobres, as forças de todo mundo”.
Alguém da platéia disse: “ Estamos no templo do consumo, isso aqui é o responsável”.
Uma moradora da favela ajudada pela Daslu disse que Eliana entrou na sua casa para ver como morava: “Ela é rica porque trabalhou muito para ser rica”.
Rosana, seu nome. Eliana disse que ela é sua melhor amiga.
Bill disse: “Temos de levar a discussão para todos, inclusive para a Daslu”.
Eu não sei o que dizer. Me lembrei do John Lennon, num show beneficente que os Beatles fizeram e ele exclamou no fim: “Não precisam aplaudir. Sacudam as jóias”.

sábado, abril 01, 2006

Macca


Foto roubada do Bebeto, legenda dele: RARIDADE - O canhoto Paul tocando na bateria (para destros) mais cobiçada nos anos 60 e 70, e um destro no inconfundível baixo Hofner (para canhotos) do mais famoso "bass guitarrist" de todos os tempos.

Encontro de repente com ele, num canal desses a cabo, unplugged como dizem, ano de 2005, intimate show, apresentando seu último “Chaos and Creation at Backyard”. Gravado no estúdio 2 de Abbey Road.
De colete e usando pulseirinhas dessas de borracha, que aludem a alguma campanha (deve ser contra a matança das focas, of course).
Lá está ele, um lindíssimo piano, transformando Lady Madonna num spiritual.
Depois conta como compôs English Tea, lindíssima:
“Eu observo muito as pessoas, essas senhoras inglesas a tomar chá. Quando vou ao exterior, sempre peço chá. E eles sempre perguntam: que tipo de chá? Eu digo - english breakfast tea. Então, essas senhoras inglesas que têm um modo peculiar de oferecer chá: would you care a cup of tea?”
Ele fica observando, e compõe, que mais ele poderia fazer? Continua: “Sempre gostei de Dickens e ele usa essa palavra –parventure. Fui ao dicionário ver, e significa por acaso. Então usei essa palavra na canção”.
E a canção diz: “miles and miles of englih gardens”.
Jardins ingleses, chá, parventure, would you care?
Depois ele mostra – O QUÊ?- nada menos que contrabaixo de Elvis Presley. E toca e canta igualzinho ao imortal rei do rock.
Tem mais: um Mellotron. Explica: “Esta é uma versão de um sintetizador dos anos 60. I love it. Vocês se lembrarão” Toca a introdução inesquecível de Strawberry Fields Forever...
O rapaz traz seu violão -- esse rapaz, hoje um senhor, entrega os violões a ele há 30 anos...
Daí conta como compôs outra belíssima - "Jenny Wrend", a partir de uma frase melódica de Bach.
Esse é seu trabalho mais experimental, e dizem que tem toques místicos. Ele acha bom. Eu também. Diz que toca bateria, baixo, guitarra, até flugelhron. Revisita o país de Blackbird. É o Backyard.
Às vezes, quando compõe, ele pode se sentir um outro. Em "Friends to go" sentiu-se George Harrison. Baixou nele.
No finzinho, baixa um certo Hermeto. Distribui chocalhos e pandeiros ao pequeno público, composto de músicos, de amigos encantados.
Toca bateria. Depois toca piano. Depois o Nige junta tudo no loop. E ele diz que inventa uma letra:
“Thats all for now
We’v got to go home
Get out of here
You’v got to go home”
Isso , então, vira o maior rock. Que se transforma em, nada menos que Blue Sued Shoes.
E fiquei feliz ao saber que Abbey Road ainda existe e está lá.
É muito bom saber que Paul Mac Cartney existe neste mundo, e que Ringo Star também.
E George e John sei lá se estariam felizes por aqui. Mas nós, sim, estaríamos, muitíssimo.
Que vivam!