quarta-feira, abril 07, 2010

Tinhorão e a Academia

Esta não está na biografia Tinhorão, o Legendário .Aliás, se eu fosse escrever todas as histórias do Tinhorão-- tantas ele me contou depois de terminado o livro no prazo exigido pela editora, e continua contando-- teria de escrever outro, e mais outro.Ele tirou do baú, a propósito da história que lhe contei sobre a censura do parecerista da Edusp ao meu livro sobre o Suplemento Literário do Estadão, em 2003.

Em 1991 ele foi convidado para escrever em uma revista da Unicamp, mas o próprio professor que o convidou disse que as normas erram "draconianas". Segue a carta, enviada em 28 de outubro de 1991, que é mais um atestado de integridade de um intelectual correto, e um deleite, como tudo o que o Tinhorão escreve.
Trata-se , talvez, de algo considerado comum e corrente nas publicações universitárias,e em outras, mas como bem lembra Brecht, não se deve considerar nada 'normal' nestes tempos.
"Não digam nunca - Isso é natural - a fim de que nada passe por imutável."

A cartinha:

Caro professor

Acabo de receber a carta datada de 21 do corrente mês, com seu convite para colaborar com "artigo, ensaio ou resenha crítica, sempre inéditos", para a revista "Resgate", da Unicamp. O convite -- em princípio amável -- poderia ainda ser considerado honroso, não fora pelo teor mais que inaceitável, até mesmo aterrador ( pelo que traz implícito) das, por V. Sa. mesmo ,chamadas "normas draconianas para os colaboradores".
E isto porque, segundo os termos dessas pré-condições para aceitação da produção intelectual alheia dão a entender, a Universidade de Campinas demonstra não se ter libertado, anda, dos cinco lustros de autoritarismo militar que nos deslustraram a todos.
De fato, aceito como geral o princípio que reserva aos editores de quaisquer órgãos de imprensa o direito de aceitar ou não escritos assinados, não se compreende que alguém possa -- em sã e democrática consciência -- vir propor essa espécie de "capitis diminutio" da responsabilidade intelectual, constituída por "sugestões para alteração", ou "pequenas alterações no texto".
E o que é mais inquietante, se chegue a sugerir o patrocínio do poder absoluto iluminado, para o caso de "alterações substanciais... sugeridas ao autor, que fará a devida revisão".
Considerando que "alterações substanciais" significa mudança do substantivo, no sentido de sua substância -- que é a parte essencial da coisa e, portanto, lhe define a qualidade -- a aceitação de tal intromissão equivaleria à renúncia da própria integridade por parte do autor.

Ora, se se considera que os espírito histórico da Universidade é o da secularização do saber, em oposição à teologia como "ciência dos deuses", não deixa de ser lamentável que, neste final do século XX, a Unicamp venha assim restabelecer o Olimpo em terra de caboclos. E, o que é pior, submetendo Palas Atena à tutela de Zeus, depois da luta de tantos anos para nos livrarmos de Ares.

Assim, enquanto aguardo o resgate da democracia intelectual nesse jardim campineiro de Academus, firmo-me, por enquanto desinteressado do presente de grego dessa "Revista Brasileira de Cultura" .

José Ramos Tinhorão

6 comentários:

Anônimo disse...

O que mais irrita no Tinhorão é a ironia, às vezes finíssima, às vezes cascuda. Ele não é tinhorão o tempo todo, não, mas nunca abandona a ironia -- e, como sabemos, a ironia já é auto-ironia. Isso põe malucos alguns intelectuais e soi-disants artistas.

Antonio

Dodó Macedo disse...

A lapada foi muito bem dada.

Tania Mendes disse...

E assim vamos ocnhecendo os bastidores da dita intelectualidade brasileira... O texto do Tinhorão é mais um primor. Aliás, ele poderia chamar-se Tinhosão.

Anônimo disse...

Pois é Beth. A carta do Tinhorão é impressionante, toca na chaga com força. Acho que você deveria escrever um outro livro sim, "De pareceres e pareceristas". Digo isto porque as editoras hoje entregam os novos textos que recebem a pareceristas que se dizem profissionais, seja lá o que isso possa significar. E agora entendi porque nenhuma delas publica escritores novos, pois os tais pareceristas devem dar o seu 'parecer' tipo o feito para o seu livro, ou seja, uma merda. Se as editoras tivessem como pareceristas escritores, acho que daria para acreditar no tal parecer. Mas aí teriam de pagar algo mais que não estão dispostos a pagar. Então, creio que os atuais pareceristas são esses jovens (mal)formados nos duvidosos cursos de editoração das nossas belas universidades e que saem de lá como os reis e rainhas da cocada branca e que pouco entendem de cultura e de literatura. Podem ser bons pareceristas em livros didáticos e só.

O problema geral é que os autores e livros estão sendo maltratados por aqui. A distribuição é um funil reacionário e absurdo. A nota dominante é: "livro é mercadoria, então, tem de dar lucro". Por aí dá para entender porque o livro não esquenta na prateleira das livrarias onde deve ser visto e manuseado para ser comprado. Distribuidor só quer saber de best-seller "que vende muito" porque já vem com a fama feita do exterior; livro que vende pouco é recolhido imediatamente e aí fica esquecido. Não querem trabalhar com livros para deleite de meia dúzia de "intelectuais" porque é "prejuízo na certa".

Se o livreiro for um intelectual (coisa raríssima nestes tempos de grandes e megas bookstores geridas por gerentes saídos do mercado executivo de qualquer área onde o objetivo é o resultado de vendas, apenas) então o livro fica ali exposto para deleite do tal intelectual que poderá levá-lo algum dia. Caso contrário, é devolvido com 3 meses de casa no máximo. Tudo virou máquina de moer, não só a imprensa, livros também. Copia-se o pior do exterior e nunca o melhor. O Rio de Janeiro ainda tem um mercado livreiro de mais qualidade que o de São Paulo porque a maioria das livrarias ainda é livraria de rua e pequena, mas este quadro está começando a mudar porque boa parte das editoras de lá que publicavam literatura de qualidade e diferenciada está sendo comprada por megas editoras internacionais que produzem os tais best-sellers.

Enfim, se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. Ainda não vejo uma luz no fim do tunel para tudo isto. Agora a novidade é em cima dos livros digitais. Uma piada. Se boa literatura não vende em papel, vai vender menos ainda neste formato pois exige e-reader um leitor especial. Para você ver que não é o preço do livro o obstáculo para a venda e sim a falta de divulgação e propaganda por parte das editoras e livrarias que só investem nisso nos best-sellers e aí vende, claro. É um círculo vicioso asqueroso. Recentemente li uma coisa que me arrepiou os cabelos. Alguém dizendo que a tendência das editoras agora é escolher e lançar só títulos de autores que viraram filme, novela, etc. porque a mídia já está feita: "lucro na certa". Ou seja, se o mercado já era estreito agora virou um fio débil para o autor nacional.

Leitora Fiel

Herom disse...

Hahaha
Adorei a carta do amigo Tinhorão!!
O cara sempre tem um texto afiado!!
Porém, acho difícil julgá-lo a priori sem saber a que alterações ele se refere. O simples fato de o editor pedir alterações não pode ser visto como negativo...
Podemos nos indignar, como Tinhorão, com a possibilidade de fazerem alterações em nosso texto; podemos recusar que façam tais mudanças. Mas, tudo depende das mudanças a serem propostas.
Ele, na verdade, cria umas picuinhas, sarna pra se coçar. Ora, toda publicação faz isso. E não vejo como insulto ao autor.
Claro que, repito, depende do caso. Há situações e situações.
Ano passado, mandei um texto para uma respeitada revista de divulgação científica, dessas que vendem em banca.
PQP!! O parecerista fez um monte de “sugestões” de mudança, me chamando ainda de ser adorniano!! Imagine vc, escrevendo sobre música popular atual, sobre Chico Science, rock e hip hop, e o cara me chama de adorniano...
Bem, final da história, algumas “sugestões” eu acatei; para a maioria, disse que não mudaria e pronto. Eles que aceitassem ou não.
No final, o texto saiu em novembro ou dezembro de 2009, depois de meses para edição...
Esse caso foi extremo. Em todos os outros (resenhas em jornal, artigos em revistas acadêmicas etc.) as tais “sugestões” são realmente superficiais, algum conceito, algum pequeno errinho etc...
E mais, digo isso porque também dou pareceres a revistas e editoras!! Hahaha

Ou seja, o Tinhorão, às vezes, exagera na implicância!!
Antes de dizer quem está mais com a razão (ele ou a revista), prefiro ver o caso...
Mas que o cara é fera, sensacional, história linda, não tenho a menor dúvida!!!

Beth querida, adorei o blog!!!!

Romildo Guerrante disse...

Beth, estou em gozo até agora com a indignação do Tinhorão diante da possibilidade de a Unicamp vir a restabelecer "o Olimpo em terra de caboclos". Tinhorão reguspatoff purinho. No pasarán!