quinta-feira, março 26, 2009

Quem puxa aos seus não degenera

Atualizado em 29 de março


Minha vó materna, Julia, ficou cega após um parto.
Tia Judith, 94 anos, lá de Poços de Caldas, me lembrou hoje, domingo, que vovó perdeu a visão uma noite, na sua casa do Brás, em São Paulo, enquanto ouvia uma serenata: tocavam Branca.

Branca, valsa de Zequinha de Abreu, aqui com Heryck Santos, tirei do You tube, numa linda versão de Dilermando Reis. Heryck, músico que conheci agora, tocou à noite numa pracinha de Livramento, que talvez se pareça com aquele antigo bairro paulistano do Brás.





Mulher guerreira, aprendeu a ler em braile já velhinha, ajudou a me criar, tomava minhas lições, passava roupa, fazia biquinhos de crochê em toalhas, sim, fazia. A cada dia, ela dizia que "enxergava" uma cor: hoje tudo azul, amanhã tudo vermelho, não me lembro que cores gostava. Olhos perfeitos, linda e sempre bem arrumada, quando saia com minha mãe para qualquer lugar, perto ou longe.
E tão generosa.

Sempre morou conosco. Em Poços de Caldas, eu bem pequena, ela tinha apenas dois vestidos. Não éramos exatamente bem de vida. Bateu à porta uma pessoa necessitada e ela falou para minha mãe doar um deles.
E minha mãe disse: "Mamãe, a senhora só tem dois, como é que vai ficar com um só?"
"Ah Nilde, depois você costura um pra mim, né?"
Nunca esqueço da resposta dela a um médico. Num retorno, o homem perguntou se estava melhor. Vovó respondeu: "Sim graças a Deus".
"Graças a Deus nada, graças a mim", retrucou o delicado profissional.
Quando vovó voltou novamente, à mesma pergunta respondeu:
"Estou melhor sim, graças a Deus e ao senhor".
Sabedoria da sobrevivência de uma alma delicada nesse mundo...
Outra que a tia Judith contou: Estavam a vó e minha mãe na igreja, mamãe se afastou para ir ao altar e quando voltou o padre reclamava com a dona Julia: ela estava rezando de costas pro santo. Explicada sua cegueira, o padre pediu mil desculpas...(mas que padre tonto, quem é que iria entrar na igreja pra ficar de costas pro santooo??comentou a tia Judith)
E mais: num carnaval, estávamos assistindo ao corso em Poços, minha avó grudada no laço do meu vestido e eu escapei, ela não notou. Eu era uma pestinha..... Quando se vê, ela estava segurando no cinto de um homem , que, depois das desculpas, respondeu: "Pois eu estava aqui pensando, é com essa que eu vou pra Maracangalha".>/span>

Adorava ouvir rádio: novelas, programa da Ave Maria, às 18 horas, colocava um copo d'água em cima do rádio pra benzer.
Especialmente ficou fã, já aqui em São Paulo, do Cid Franco, que tinha, segundo lembro, um desses programas. Gostava tanto que pediu a mamãe para escrever a ele. Cid Franco respondeu e mandou junto um livro dele. Quem leu para ela? Deve ter sido minha mãe.Tenho por aqui, preciso achar, o livro e a carta.

Cid Franco, me lembra o querido amigo e companheiro de tantas lutas, Davi de Moraes, era deputado pelo Partido Socialista, ele o conheceu. Quando a Assembléia era naquele prédio lindo do Parque Dom Pedro, existia uma deputada destemperada e anticomunista ao extremo chamada Conceição da Costa Neves, que andava com um chicote, e chegou a declarar que iria chicotear o Cid Franco.
Davi diz que ele fez um discurso tão incrivel na tribuna que desarmou a mulher.
Disse também que Cid sempre foi ligado nas coisas espirituais.


Minha avó Julia está sempre comigo, assim como minha mãe. Ela se foi quando eu tinha 15 anos, mamãe há seis anos.

Anos depois, vim a saber que Walter Franco, esse admirável músico, filósofo, poeta, compositor, cantor, é filho do Cid Franco.

"Quem puxa aos seus não degenera" é uma música linda dele.
"Coração Tranquilo", de 1978, é outra que só anos depois vim a entender, quando a professora de Tai Chi disse: "mente quieta, coração vazio".
Tudo é uma questão de manter a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranquilo, repete o mantra da música de Walter Franco, que canta aqui com seu filho Diogo. A coisa mais difícil, mas não impossível.
A vó Julia gostaria de conhecer o Walter. Especialmente gostaria dessa "Quem puxa aos seus não degenera", como eu gosto.



Quem puxa aos seus
Não degenera, não
Degenera, não
Não degenera

Daí meu pai disse
Meu filho, espera
A inocência que há
No olhar da fera

E a minha mãe, ai, ai
Meu Deus,quem dera
A paciência de uma
Longa espera

Quem puxa aos seus
Não degenera, não
Degenera, não
Não degenera

E a minha mãe, ai, ai
Meu Deus,quem dera
Quanta ciência
Quanta primavera

Daí meu pai disse
Meu filho, espera
Que a violência, meu amor
Já era



8 comentários:

Unknown disse...

Nossa, tudo lindo. a história, a música.
mas tu acreditas nisto: quem puxa aos seus, não degenera?

mas é legal, este encadeamento que o papo vai proporcionando. tal qual um novelo de lã, as coisas vão se desenrolando... desenrolando... e o cérebro, a mente?... e o coração?...

Anônimo disse...

aimeudeusdocéu, seguiu com a id do meu filho... beijão, luzete

Elizabeth disse...

valeu Gustavo. eu acredito sim, quando aqueles a quem a gente puxa são do bem, porque senão...

o cérebro, a mente, o coração?
tudo é uma questão de manter
a mente quieta
a espinha ereta
e o coração tranquilo
bjs

Elizabeth disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

Em 73, acho, eu você nós quinhentos e Walter Franco girando sem parar. Era Mixtura a música e aquilo ficou até hoje grudado no ouvido.
Numa república na rua Costa Carvalho do meio-dia à meia-noite. Vizinho chamava polícia. Hoje eu imagino a dor sem delícia que era morar ao lado de república.
E não era ainda Walter Franco fase-Zen. Estava "numas", paulada:

O raciocínio lento,
O poço, pensamento,
O olho, orifício,
O passo, precipício.
Eu quero que esse teto caia.
Eu quero que esse afeto saia. Eu quero que esse teto caia.
Eu quero que esse afeto saia.

Em vermelho natural,
Com gosto de água e sal,
No rosto e no lençol,
Misturando o bem e o mal.

Mas você tinha dois vestidos? Metida!
Eu tinha um par de vulcabrás que quando novo era 3 números maior, pra render enquanto o pé crescia. Isso com tudo, calça, cueca, camisa...
Por aí você imagina a minha antiga elegância.

Abração.

Elizabeth disse...

Eu não tinha dois vestidos, Liu, era minha vó.
Eu nem tinha nascido ainda acho, e se tivesse, só precisava de umas fraldinhas. E você com o vulcabrás, sei bem como era
Mas o Walter Franco, hein?
Cabeça, irmão
beijos

Anônimo disse...

É mesmo,
Sua avó.
China burro.

Unknown disse...

Olá, Bete:
Seu blog anda animado mesmo, hein?
Beijos,
Z