“Minha ética como marceneiro é igual à minha ética como jornalista - não tenho duas. Não existe uma ética específica do jornalista: sua ética é a mesma do cidadão… O jornalista não tem ética própria. Isso é um mito”.
O jornalista Cláudio Abramo gostava muito de marcenaria. E deixou esta mensagem simples, clara, translúcida, lúcida, que nunca é demais lembrar.
Concordo integralmente.
Por isso, quando entidades ligadas aos jornalistas tentam criar códigos de ética, dou de ombros.
Nos anos 70, quando os sindicatos voltaram para as mãos dos trabalhadores que, então, tinham carteira assinada e trabalho nas redações, um outro grande jornalista, Perseu Abramo, aliás sobrinho de Cláudio, coordenou uma Comissão de Ética no então atuante Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo.
Foi um trabalho sério.
Naquela época, entretanto, plena ditadura, sabia-se o que era correto, o que era condenável, onde estávamos e contra o que e quem lutávamos. Por militar em um sindicato que era o centro fervilhante da luta pelas liberdades democráticas, não se recebia flores, ao contrário. Não estávamos lá para nos locupletar, para ganhar benesses, subir na carreira, etc , etc. Ao contrário: corríamos muitos riscos.
No entanto, estávamos lá porque acreditávamos naquilo por que lutávamos.
Vão dizer: que jargões antigos, que coisa mais antiga. É sim, galera, que coisa mais antiga essa.
Mas é História, e é bom aprender um pouco com ela.
Sobre os últimos acontecimentos da chamada Operação Satiagraha, com relatórios da Polícia Federal denunciando o envolvimento de jornalistas com Daniel Dantas e sua caterva, vi alguns comentários na rede de pessoas perguntando se as entidades dos jornalistas tomariam alguma providência.
Bem, pensei, se fosse na época da Comissão de Ética do Perseu, acho que haveria, sim, grandes discussões e tomadas de posição.
Mas hoje, quando os sindicatos e as entidades “representativas” dos jornalistas não diferem nada dos que estavam no poder antes dos anos 70, e que eram chamados de “pelegos” ( aquela peça entre o cavalo e o cavaleiro, que amortece o baque) , nada será feito. Porque os sindicalistas de hoje só viajam em aviões com passagens pagas pelo imposto sindical contra o qual muitos lutavam, e querem se perpetuar no poder, como os pelegos queriam.
Lembrei, então, do caso de uma jornalista, nos anos 90, que seqüestrou um bebê para provar a falta de segurança em uma maternidade de Brasília.
Ora, cometer um crime para fazer uma denúncia me pareceu o começo do fim da minha profissão. Escrevi um artigo: “Devemos temer os jornalistas”,acrescentando um novo personagem à enorme lista de temores que os cidadãos enfrentam.
O então representante de Federação Nacional dos Jornalistas ( Fenaj), do qual não me lembro o nome, me disse que “ela não teve intenção”. Tampouco seus chefes, que permitiram a execução do crime e a publicação de seu relato.
Não sei o que aconteceu com a jornalista, sei que ela foi defendida por sua federação e seu sindicato. Por sua corporação. Quanto aos pais do bebê, também não sei de nada. Tudo ficou por isso mesmo.
Entre as tantas histórias que envolvem jornalistas e falta de ética, esta foi a que me acorreu à memória agora, nesta geléia geral brasileira.
Porque também li na internet um artigo de um jornalista afirmando que, para a globosfera, “jornalista defendendo jornalista só pode ser corporativismo”. (Sim, a blogosfera está revoltada com os jornalistas.)
Ele afirma isso a propósito das gravações de conversa entre uma repórter e um assessor de Dantas, dizendo que tinha escrito uma matéria “de encomenda” para ele. E pedia uma informação.
Diz ele que já viu coisa pior de jornalista para ficar perto da fonte. Que é condenável, mas não criminoso.
Não estou aqui para defender delegados da Polícia Federal. Também não estou aqui para apontar erros de português de delegados da PF. Ao contrário, sempre presto atenção aos erros de ortografia e de informação dos jornalistas.
Estou aqui para refletir sobre ética e jornalismo.
São incontáveis os casos de ligações perigosas entre jornalistas e fontes.
Da década de 1980 para cá- a chamada “década perdida” – houve muitas transformações na profissão. A informatização trouxe a redução de vagas, as mudanças político-econômico-sociais do país e do mundo se abateram sobre este segmento, como sobre todos os outros, e do seu lado mais trevoso surgiu um corolário de conseqüências perigosas.
Entre elas, agravou-se questão da ética.
Como dizia Cláudio Abramo, não existem duas éticas, a pessoal e a profissional.
Neurologistas dizem que a partir dos 15 anos o indivíduo tem maturidade mínima para conviver com a sociedade. Eu, leiga, acho que seja antes.
Mesmo quando a sociedade se esfacela, valores perdidos, paradigmas quebrados, vale-tudo instaurado, continuamos sabendo, dentro do pensamento dualista que nos guia, o que é bom e o que é ruim. Mas, dois pesos e duas medidas, lodaçais, impunidades, salve-se quem puder, lideranças mundiais enlouquecidas, pouquíssimos comportamentos louváveis – então o que fazer?
Entramos na dança também?
(Um programa de televisão faz um apresentador se passar por cego andando nas ruas e perdendo uma nota de R$ 50. Foram em maior número os transeuntes que embolsaram a nota do que os que a devolveram.)
Mas se do noticiário sobre organizações criminosas de colarinhos brancos saltam cifras estonteantes, muitos e muitos zeros, só milhões e bilhões, aplicações em paraísos fiscais, manipulação de corações e mentes, gentilmente cedidas em troca de altíssimos interesses.
Isso sem falar do mar de sangue e da guerra civil diuturna nas periferias.
Por que não entrar na dança também?
E quem dirá que não há ligação entre esse quadro tenebroso ( horrores da guerra jamais pensados por Goya?) e, por exemplo, os 22 bebês mortos na Santa Casa de Belém, ( notícia desta mesma época dos escândalos da organização criminosa de Dantas) uma média mensal considerada normal pela secretária da Saúde?
E no enterro coletivo desses bebês, caixotes lacrados a serem abertos por pais em desespero à procura do seu: “Todo mundo já achou o seu? Então vamos logo, temos de enterrar”, grita um funcionário, no comovente relato da jornalista Paula Sampaio, coração na mão, em belíssimo texto e fotos terríveis do cemitério de Tapanã,
“para onde vai todo mundo que não tem chance de construir sua própria história, o cemitério dos pobres, como dizem. E esta vai continuar sendo a morte nossa de todos os dias. Um jardim de perdas, cultivado em covas rasas. Nada mais."
E quem dirá que não há ligação entre esses crimes do colarinho branco, e por exemplo, a questão do amianto, que tem um lobby de médicos para atestar que trabalhadores expostos à substância, com os pulmões empedrados, estão bem de saúde?
Como, então, pode-se pensar em defender jornalistas citados em relatórios policiais, misturados à promiscuidade de lobistas?
Se no caso em questão, aqueles jornalistas que não fazem parte da organização criminosa ( porque esses são caso de polícia e não de discussão ética) , apenas querem “cultivar suas fontes”, vamos definitivamente parar com essa , como diz um amigo jornalista, “procissão de virgens”.
Que nunca têm intenção, que são profissionais, que estão a serviço da notícia, que jornalista é imparcial, não tem time, nem partido, nem torce por nenhum dos lados.
(Naquela década de 1970 citada acima, havia na maioria dos profissionais, um certo estranhamento com as fontes. Nada melhor, aliás, do que ficar de pé atrás do que cair nos braços do primeiro que acena com uma provável informação de cocheira, não é mesmo?
E acontecia que, com a censura empresarial e política, as notícias não publicadas na grande imprensa iam parar nos jornais alternativos, que não tinham dinheiro para pagar por ela. Mas ninguém estava pensando em dinheiro, apenas na notícia.)
Está mais do que na hora de se criar vergonha nas caras.
Não há entidades representativas dos jornalistas à altura.
Não haverá tão cedo.
Mas a ética existe, e para guiar a vida em sociedade. Não precisa ser codificada.
Ética não tem várias interpretações, como as leis.
Dizia Joseph Campbell que, para saber qual a mitologia do seu tempo, é só ler a primeira página dos jornais.
As primeiras páginas mostram um quadro terrível, mas bem revelador de que estamos em meio a um furacão, e precisamos escapar para o olho.
No centro de um ciclone tropical, chama-se olho a uma área de ventos calmos e tempo bom, onde há pouca ou nenhuma precipitação e pode-se, muitas vezes, ver o céu claro.