Rimbaud exerceu especial influência através da fase final de sua obra: é como se, do impecável verso parnasiano dos poemas escritos aos 16 anos até as prosas poéticas, tivesse percorrido cinquenta anos de história da literatura em cinco de produção. “Uma estadia no inferno” e “Iluminações” são escrita do século XX no final do século XIX, justificando ver-se como o novo Prometeu: “O poeta é realmente o ladrão do fogo”. Por isso, tornou-se leitura de cabeceira dos “horríveis trabalhadores” que o sucederiam. Dois belos parágrafos do recente “Só garotos” de Patty Smith documentam esse impacto: “Rimbaud tinha as chaves para uma linguagem mística que devorei mesmo sem ainda ser capaz de decifrar”. Antes, Henry Miller escrevera “O tempo dos assassinos” detalhando essa experiência. Foi autor de cabeceira de Jack Kerouac e Allen Ginsberg no período da formação da Geração Beat. Paul Claudel teve uma crise ao descobri-lo. André Breton relatou que, ao retornar aos lugares onde lera suas prosas poéticas pela primeira vez, tinha alucinações. Roberto Piva declarou: “Foi com Rimbaud e Nietzsche que aprendi meus toques de inferno”. Em um livro deste ano, Afonso Henriques Neto vê que “os jovens já escolhiam o novo hino/ entre rimbauds de altíssima voltagem”. Tantos outros já deram testemunhos semelhantes.
“Espero tornar-me um louco muito mau”: essa frase de “Uma estadia no inferno” poderia ser a epígrafe geral da sua obra. Foi rebelde total: execrou qualquer símbolo de autoridade; detestou o mundanismo literário; apoiou a Comuna de Paris de 1871, que lhe inspirou poemas em favor das incendiárias; abominou a burguesia e a burocracia. Criou o monólogo do exilado — “Por ora sou maldito, tenho horror à pátria” — que tem o “sangue mau” e pertence a uma “raça inferior”. Identificou-se aos marginais, ao “forçado intratável contra quem se encerram as grades da prisão”; e aos negros: “sou um bicho, um negro”; verberou os “falsos negros”. Situou-se fora do cristianismo: “Nunca me vejo nos conselhos de Cristo”. Insultou os devotos e os sacramentos em “As Primeiras Comunhões”.
Anunciou as viagens em “Uma estadia no inferno”, com o “Adeus” do final, e em “Iluminações”: “Partir para afetos e amores novos!”. Abandonaria o Ocidente: “Minha jornada chega ao fim; deixarei a Europa”. E o mundo: “A verdadeira vida está ausente. Não estamos neste mundo”. Mas primeiro desceria aos subterrâneos em busca dos “segredos para mudar a vida”; da vidência: “é oráculo o que digo”. A partir de “O barco ébrio” e “Vogais”, passou a criar poesia onírica. O deslocamento é sua lei: tudo pode ser outra coisa, em uma combinatória infinita. Em lugar de “Alquimia do verbo”, poderia ter utilizado este título: “Autonomia do verbo”.
É importante interpretar seus poemas alquímicos; e, pelas conseqüências que teve, examinar sua poética, pela qual levou a extremos a crença romântica no poder criador da imaginação: “Acabei achando sagrada a desordem do meu espírito [...] Escrevia silêncios, noites, anotava o inexprimível. Fixava vertigens”. Insistindo que “é preciso ser vidente, tornar-se vidente”, declarou: “O poeta torna-se vidente através de um longo, imenso e estudado desregramento de todos os sentidos”. Não se trata apenas dos sentidos da percepção, mas de todos os sentidos: o bom senso (em francês sentido e senso, sens, são a mesma palavra); a razão; a relação de significação, substituída pela liberdade de significar.
Rimbaud aspirava à síntese de rebelião e revolução; queria a liberdade total, intransitiva. Suas visões não deveriam realizar-se na esfera supracelestial, mas na terra: “Quando iremos afinal, além das praias e dos montes, saudar o nascimento do trabalho novo, da nova sabedoria, a fuga dos tiranos e demônios, o fim da superstição, para adorar — os primeiros! o Natal na terra!” É pensamento utópico e celebração da vida: “Oh! um novo corpo amoroso reveste os nossos ossos”. Mas quem se expressa assim é, ao mesmo tempo, um descrente “Farto de ver. [...] Farto de ter. [...] Farto de saber”; por isso, quer “Partir para afetos e amores novos”. Seu silêncio e saída de cena podem ter indicado uma derrota política: preferiu não dizer mais nada a expressar o desencanto diante de um mundo que se fechava à utopia. Mas seus poemas e prosas poéticas continuarão a despertar talentos, mostrando os modos de manifestação da inquietação.
Todas as citações de poemas e prosas poéticas de Rimbaud utilizam a tradução de Ivo Barroso, nos dois volumes, “Prosa poética” e “Poesia completa”, publicados pela Topbooks
CLAUDIO WILLER é doutor em Letras na USP. Poeta, ensaísta e tradutor. Autor, entre outros, dos livros “Geração Beat”, “Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e a poesia moderna” e vários ensaios na coletânea “O Surrealismo”
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