domingo, outubro 17, 2010

Os óculos Oakley, o náufrago de García Márquez e o heróico salvamento dos chilenos

Do Blog Nota de Rodapé
Ricardo Viel

Em 1955, um repórter chamado Gabriel García Márquez foi escalado pelo editor do diário colombiano El Espectador para contar a incrível história de Luis Alejandro Velasco, que sobreviveu dez dias em alto mar, sem comer nem beber, depois de cair do navio em que trabalhava – outros sete marinheiros caíram no mar, mas morreram. García Márquez foi incumbido de narrar uma história que, à época, fora explorada à exaustão pelos meios colombianos. O náufrago, depois de declarado oficialmente morto (as buscas se encerraram após o quarto dia), virou herói nacional, foi beijado pela “rainha da beleza”, ficou rico com comerciais e, por fim, esquecido para sempre.
Havia algo na fantástica história que faltava ser contado: os motivos pelos quais Velasco caiu no mar. A embarcação vinha dos Estados Unidos sobrecarregada de muamba e, ao encontrar uma tempestade, acabou por entornar. Parte da carga e alguns marinheiros caíram no mar. García Márquez, depois que a história esfriara, conseguiu descobrir o real motivo do naufrágio. O Relato de um Náufrago saiu em fascículos semanais no diário e depois virou livro. Além da qualidade da narrativa, Gabo teve o mérito de expor mazelas escondidas ao recontar a história.Nesta semana, o mundo (não é exagero dizer) se comoveu com o resgate de 33 mineiros que ficaram, por 70 dias, enterrados a quase 700 metros de profundidade em uma mina nos Andes.
Com a facilidade de informação em tempo real, fomos bombardeados com a história de vida dos chilenos, que, assim como Velasco, viraram heróis. Eles também terão encontros com rainhas da beleza, farão comerciais, ganharão dinheiro e serão esquecidos.33 óculos e 40 milhões de dólaresNo entanto, há, ainda, muito a ser contado sobre o ocorrido no Deserto do Atacama.
Fatos como a “doação” de 33 óculos de sol que a Oakley fez aos mineiros. Calcula-se que a exposição gratuita que a marca teve com as imagens dos trabalhadores usando seu produto ultrapasse os 40 milhões de dólares – o custo do resgate dos 33 chilenos foi estimado em 20 milhões de dólares. O que há por trás disso? Segundo o jornal El Mundo, da Espanha, durante os trabalhos de escavação para a retirada dos mineiros foi encontrada uma grande quantidade de ouro e cobre na mina. O Chile é hoje o 15º produtor mundial de minério e pretende, até 2015, alcançar a sétima posição. Quem ficará com essa riqueza descoberta? A mina será reaberta?

Quantas minas como a San José existem no Chile e na América do Sul? Quantos mineiros vivem em situação de risco como os resgatados? É exagero imaginar que muitos trabalhadores de minas trocariam 70 dias de liberdade, a 700 metros embaixo da terra, para ganhar uma casa, 20 mil dólares, fazer propaganda, ganhar ingresso vitalício para assistir seu clube de coração, ser convidado pelo Real Madrid para ver um jogo no Santiago Bernabéu e, principalmente, nunca mais precisar viver como tatu?
O que aconteceu com aquele mineiro, desconhecido, que perdeu uma perna no dia em que os outros 33 ficaram soterrados? Vai ganhar um abraço do presidente do Chile? Vai ganhar óculos de sol da marca gringa? Vai precisar se enfiar embaixo da terra com uma perna só para sustentar a família?
Espero, e torço para, que um novo Gabriel García Márquez seja escalado para contar a história por trás dessa história dentro de alguns meses, quando tudo isso pareça só o roteiro de um filme. Por falar em filme, um canal de TV espanhol, em associação com um colombiano, já está filmando a história dos 33 mineiros.

2 comentários:

Claudio Versiani disse...

Quem não leu o "Relato de um náufrago", não sabe o que está perdendo, é claro. O livro é fruto de um repórter que não se contenta com a primeira resposta.
Depois que García Márquez publicou a reportagem, foi chamado de mentiroso e muitas outras coisas e até sofreu ameaças.
Mas no final, uma fotografia de "recuerdo" da tripulação no convés do navio, mostrava as "muambas".
Contra fatos não há argumentos.
Cara Beth, bela sacada essa nota.
Ab.

Elizabeth disse...

artigo ótimo do jornalista né? nao tinha saido nada ainda com esse enfoque