Morreu mais um mestre. Ano passado ele fez 100 anos. Esta é uma matéria minha publicada pelo caderno Eu & do Valor Econômico.Olhem só o que ele dizia, há mais de 20 anos:
Constatando que não vivemos em uma época brilhante em termos intelectuais declarou, há mais de vinte anos, que “existem períodos particularmente notáveis, do ponto de vista da produção intelectual, e períodos de vazio, e acredito que a atual fase é do segundo tipo”.
Os 100 anos de um mestre
O antropólogo que ajudou a desvendar mitos da América recebe homenagens na sua travessia do século
Por Elizabeth Lorenzotti
28, 29 e 30 de novembro de 2008
Até o ano passado o mestre ainda usava o metrô para suas atividades, entre elas participar das reuniões da Academia Francesa, da qual é membro desde 1973. Nesta sexta-feira, 28, mais recolhido (após uma queda locomove-se em cadeira de rodas), porém lúcido como sempre, o “arqueólogo do espaço”, como ele se definiu em Tristes Trópicos (1955) -- a clássica narrativa de sua viagem de estudos entre os índios no Brasil -- o viajante que detestava viagens completa 100 anos de prodigiosa travessia no breve século 20.
O grande pensador recebe, hoje, mais homenagens em Paris: um dia inteiro dedicado a Claude Lévi-Strauss no Museu du Quai Branly. E recentemente obteve mais uma consagração: foi incluído na Biblioteca da Pléiade, a coleção mais prestigiosa da França, que publica grandes obras de referencia do patrimônio literário e filosófico mundial.
Belga, filho de pais franceses, iniciou sua carreira universitária, aos 26 anos, no Brasil, nomeado professor da recém-criada Universidade de São Paulo (1935-1938).
Ele mesmo declarou que, durante aquele período “o que mais me interessava não era dar aulas, mas fazer pesquisas de campo. Então, aproveitava minhas férias para viajar. Na primeira vez, conheci pequenas populações de língua tupi na região Sul, Paraná e Santa Catarina. Depois aproveitei três meses de férias e passei uma temporada maior com os caduvéus, na fronteira com o Paraguai, e outra com os bororos, no centro de Mato Grosso. Por fim, a terceira missão, que preparei durante todo um ano, me levou às terras dos nhambiquaras e outras populações que vivem no norte de Mato Grosso”. As expedições foram patrocinadas pelo Departamento de Cultura de São Paulo, dirigido por Mário de Andrade.
Há uma versão de que Lévi-Strauss teria sido demitido da USP -- onde mais tarde recebeu o título de doutor honoris causa -- por ser comunista. O professor Antonio Candido de Mello e Souza, que estudou nas primeiras turmas da Filosofia da Universidade, nega: “A direção da faculdade achava que ele devia dar aulas, e não fazer suas pesquisas viajando. Ouvi de alguém que Julio Mesquita pensava o mesmo. Strauss era amigo do Paul Rivet, etnólogo francês que também estava no Brasil, um socialista, aliás amigo de Mesquita.Ele foi simpático ao socialismo, mas não era comunista”.
De volta à Europa convulsionada, em 1941 suas pesquisas renderam um convite para dar aulas na New School for Social Research de Nova York, onde também escapou à perseguição nazista. Lá conheceu a lingüística estrutural de Roman Jakobson, sua mais importante influência teórica. Em 1948 defendeu tese de doutorado, publicada em 1949: As estruturas elementares do parentesco, marco fundador da antropologia estrutural.
Segundo o antropólogo, o estruturalismo “é um esforço para aplicar, na medida do possível, o pensamento científico àquelas áreas que chamamos, impropriamente, de ciências sociais, ou ciências humanas. Digo impropriamente porque elas não são, nem nunca serão, ciências. Um etnólogo, por exemplo, está envolvido demais com o objeto de seu estudo para abandonar os preconceitos e as formas de pensamento que herdou. Isso se explica, no fundo, pelo fato de que as chamadas ciências sociais e ciências humanas não são coisas que se possam isolar do mundo real. Podemos progredir um pouco em seu conhecimento, mas isso é tudo”.
Na década de 1960 o estruturalismo virou moda, segundo Lévi-Strauss, “graças a uma série de mal-entendidos. As pessoas imaginavam que se tratava de uma nova filosofia para a era industrial e tecnocrática, e poderia resolver todas as questões do mundo...”.
Desvendador do Outro por excelência dos europeus, os ameríndios, Lévi-Strauss concluiu que as sociedades estudadas pela etnologia seriam “frias” em relação às modernas. “São sociedades que produzem extremamente pouca desordem, isso que os físicos chamam de “entropia”, e têm uma tendência a se manter indefinidamente no seu estado inicial, o que aliás explica que para nós elas se pareçam como sociedades sem história e sem progresso”. Mas observou que as sociedades modernas precisariam incorporar algumas lições das primitivas, para o bem de ambas.
Hoje, especialistas apontam que o desenvolvimento de sua obra se dá, na realidade, no Brasil, principalmente no trabalho do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, professor do Museu Nacional, no Rio de Janeiro.
Para Beatriz Perrone-Moisés, professora do Departamento de Antropologia da USP, “as idéias de Lévi-Strauss continuam bem vivas, gerando conhecimento e sugerem múltiplas possibilidades a serem ainda exploradas”.
Ela tem traduzido, com os cumprimentos do mestre, desde 2004, pela Cosac Naify, a edição integral da tetralogia Mitológicas, começando por O cru e o cozido. Ponto culminante de sua obra, Mitológicas analisa um conjunto de 813 mitos de diferentes povos indígenas do continente americano. Em 2005 foi lançado o segundo volume, Do mel às cinzas, e em 2006, A origem dos modos à mesa. Para 2009 está previsto o lançamento do último volume, O homem nu, estes três traduzidos no Brasil pela primeira vez.
No dia 11 de dezembro, no fim do ciclo Os sentidos de Lévi-Strauss, promovido pela USP, será lançada nova tradução de Antropologia estrutural, publicado originalmente em 1958. Nos textos, escritos entre 1944 e 1956, Lévi-Strauss faz relações da antropologia com a lingüística, a psicanálise e a arte, e analisa o ensino da disciplina. Também no dia 11, no Instituto de Estudos Brasileiros, a ex-aluna de Lévi-Strauss, Manuela Carneiro da Cunha, do Departamento de Antropologia da Universidade de Chicago falará sobre O efeito Lévi-Strauss nos EUA e no Brasil, encerrando o ciclo iniciado dia 9 de outubro.
Observador atento em todos os sentidos, é dele a única apreciação contrária que se tem notícia de um acidente geográfico cantado e decantado: a Baía de Guanabara pareceu-lhe uma boca banguela.
Em entrevista a Perrone-Moisés em 1998, aos 90 anos, o etnólogo lembrava-se do perfume dos abacaxis no rio Madeira e de vários cheiros do Brasil: de fumo de rolo, da pinga, da rapadura. Na segunda e última viagem ao país, em 1985, evocou a qualidade muito especial do ar paulistano, ao mesmo tempo combinando altitude e clima tropical. No belo livro Saudades do Brasil (1995), ele conta, em um pé de página, que seus ouvintes gargalharam: “Mergulhados cotidianamente no inferno paulista da poluição, não o identificavam mais como tal”.
Constatando que não vivemos em uma época brilhante em termos intelectuais declarou, há mais de vinte anos, que “existem períodos particularmente notáveis, do ponto de vista da produção intelectual, e períodos de vazio, e acredito que a atual fase é do segundo tipo”.
Que não lhe perguntem, porém, como sair dela, advertiu o mestre. ”Eu não sei”.
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