quinta-feira, abril 23, 2009


Memórias de uma moça bem comportada- 1


Há tempos estou para começar esta série, tirando coisas do meu baú. Sim, eu tenho um precioso baú, e como diz o professor Antonio Candido, é bom ter um baú.
Um baú histórico, minha gente.
Tremei os que têm por que tremer! E resolvi começar por uma historinha daquelas nada exemplares.
Lembrei dela hoje ao responder a uma pergunta de um antigo colega, que trabalhou comigo na inesquecível sucursal paulista de O Globo, em tempos nos quais não havia ainda competição, rasteiras, individualismo exacerbado, etc. Essas coisas.
Ele me perguntou sobre a redação da revista Nova Escola, que ficava na Haddock Lobo, perto da Paulista, onde estávamos almoçando.
Eu trabalhei lá no fim da década de 1980. Uma revista da Fundação Victor Civita distribuída para as professorinhas de escolas públicas de todo o país. Já era um macete da Abril, o governo comprando as revistas, como é até hoje. Entretanto, naquela época, as matérias ao menos enalteciam boas experiências de professores, me disseram que hoje em dia não é assim...
Viajávamos bastante para resgatar experiências pedagógicas bem sucedidas.
Na redação trabalhavam não só colegas, mas alguns companheiros de militância, desde a luta pela redemocratização até a fundação do PT. A diretora de redação naturalmente não era dessa turma, mas acabou se dando bem com alguns deles, não comigo. Havia, não sei hoje, uma coisa esquisita naquelas pequenas redações abrilianas, que era uma obrigatoriedade velada de você se relacionar com os chefes, frequentar suas festas e sua vida particular. O que nunca foi meu caso.
Pagam para você ser uma profissional, não para amigos obrigatórios, não é?
Assim, como não participava dos convescotes, fui ficando afastada.
Até que um dia deu-se a historinha nada exemplar.
A Abril tinha o costume de contratar professores de português para eventuais conversas com a redação, o que era mesmo muito bom.
Um dia, foi marcada uma reunião dessas com o professor da PUC Samir Meserani, amigo da redatora chefe. Ele começa a analisar todas as matérias da recente edição cuja capa era minha, e falava sobre Arte-Educação no país, matéria relegada e levada à frente pela insistência de alguns abnegados professores.
A papa desse setor, professora Ana Mae Barbosa, havia me escrito uma carta elogiosa.
O professor em questão analisa a revista inteira e elogia todas as matérias. Deixa a minha para o final e esculacha: diz que era burocrática, mal escrita, apenas um boxe se salvava, e não deveria estar na capa.
Abismada, atônita, eu só consegui responder que a escolha da capa era feita pela redatora chefe, e não por nós editores. Básico.
Nem disso o professor de português entendia. Argumento furadíssimo.
Nenhum dos colegas e companheiros presentes disse nada.
Bem, olhem o desfecho: no dia seguinte, a redatora chefe faltou e deixou o trabalho sujo para seu assistente, um jornalista nissei daqueles meus companheiros -- para o qual eu, aliás, havia articulado a vaga, quando ele estava na pior-- e que subiu na vida lá dentro logo. Acho que era editor executivo.
Ele me chama para conversar num bar, me convence que realmente eu não era boa jornalista e me demite.
E o pior: como ele era uma das pessoas nas quais eu confiava, fiquei totalmente arrasada, achando que realmente era uma péssima jornalista.

O professor de português fez um relatório por escrito, que infelizmente rasguei: imagino hoje como seria interessante retirá-lo do baú e mostrá-lo aqui. Depois de um prefácio do professor Antonio Candido para o meu livro, por exemplo.

Passei longos meses convalescendo desse episódio torpe. Um professor universitário se prestar, por uns trocados, a servir de fundamento para uma demissão que tinha motivos pessoais.
A redação se desmantelou com o tempo. O professor morreu, que descanse em paz, os outros se desentenderam. Há uns dois anos encontrei o jornalista nissei num lançamento de livro de amigo comum, ele veio me cumprimentar alegremente.
Aliás, lançamentos de livros são sempre interessantes: no do meu, apareceu do nada o chefete que desmantelou, cumprindo ordens fascistas, toda a nossa preciosa redação da sucursal paulista de O Globo, no século passado, porque fomos solidários ao querido chefe Candido Cerqueira, que havia sido demitido.

Não é só no jornalismo que isso ocorre, sabemos todos.
E eu repito a pergunta da minha amiga virtual Luzete: de que é feita a alma humana?
Também dessas histórias nada exemplares, que eu precisava exorcizar.

21 comentários:

Edu Reina disse...

Nossa, isso foi ontem na redação ao lado? O ontem é hoje. Bom jornalismo acabou.

luzetep@gmail.com disse...

nossa, beth, eu, tão novinha,e já presente nas tuas memórias. uma honra. juro.

pois é, eu te asseguro, a alma humana nunca deixa de nos surpreender. ela nos prega cada susto! alguns até bons, outros...

exorcizar estes fantasmas fazem bem. e se olhamos para o coletivo da história (como tem me lembrado um amigo, também virtual) acho que não podem nos acusar (à nossa geração) de termos errado o tempo todo...

Elizabeth disse...

Luzete, não erramos o tempo todo, tenho orgulho da nossa geração, mas não de toda ela. bjs
Edu,que triste, tens razão. Estaria acabado, não fossem os grandes jornalistas como você, sérios e honestos, contamos em quantos dedos das mãos???

Elizabeth disse...

No caso dessa memória, repito o cabeçalho do mestre galego aí em cima:
" às vezes um é até menos que nenhum, porque uns há que não só diminuem, como até negam."

Anônimo disse...

Betinha.

A verdade prevalece.Sempre.
Além de excelente jornalista vc é uma pessoa do bem e de caráter, e o colega ingrato deve estar colhendo o que plantou.
Beth, gostei muito desse baú, continue a nos trazer essas lições de vida.
Beijo enorme.
Marcia

Elizabeth disse...

Marcita, o que aprendi nessa vida é que ela cobra, e dá voltas, é só ficar parada esperando...

Luiza disse...

É, Beth, nem nas variadas profissões, nem no tempo, isso muda...
Apenas deram uma "tucanada" nas coisas:
. puxa-saquismo virou marketing pessoal
. profissionalismo virou natureza anti-social
. panelina virou stockholders
e por aí vai...

Além disso, a gente nunca é traído pelas pessoas em quem não confia... mas que dói.. puts...

Mas será mesmo que a vida trata de penalizar essas traições? Acho que a questão é que o mundo do jeito que está é feito para o sucesso fácil desses energúmenos. O resto tem de ralar o triplo... só tem que com a cabeça esperta, a espinha ereta e o coração tranquilo, certo?

Beijos

Elizabeth disse...

Luiza, kkkkkkkkkkkk, sabe que a primeira vez que ouvi falar em stockholders ou coisa que o valha, fiquei dias pra desobrir o que era. daí entendi que se trata da velha e eterna lista do que voce muito bem denominou panelinha
kkkkkkkkkkkk
sobre a vida, tenho certeza, é aquela velha lei da Física, a toda ação corresponde uma reação, no sentido contrário e com a mesma intensidade.
o cosmos também é regido por ela,
e a mente quieta, espinha ereta e coração tranquilo, ajudam mucho
beijão

Luiza disse...

hehehe... acho que tenho mesmo que trocar a cabeça esperta pela mente quieta... ou os stockholders me passam o facão como fizeram com vc... ai... e eu lá consigo? bjus...

Elizabeth disse...

garota, tu não entendeu: a mente quieta torna a cabeça esperta!!

Luiza disse...

ah! é muito tao para mim...rs... mas valeu a tentativa...

Liu disse...

É você comungando, é?
E o padre, conservou o dedão intacto?
Há há!
Esse não sabe o risco do sacerdócio.

Elizabeth disse...

é nada, eu era uma menina bobinha e cumpridora dos sagrados deveres religiosos, gostava mesmo, é verdade.
kkkkkkkkkk

Liu disse...

Tem um espelho atrás que te reflete de costas?
Parece Goya.
Acho que o fotógrafo teve uma premonição na hora.
"Esta vai ser gauche na vida..."
Tô arrepiado, querida Beth.

Elizabeth disse...

não é espelho nao, tá doidjo? é outra menina que já tinha tomado a hóstia e tava se retirando

Luiza disse...

Sei não, acho que o Liu assou o gatinho no alcool..kkkkk...

Liu disse...

É, pode ser...
O véu dela tá pra frente e o seu pra trás.
Que parece "A Profecia" parece.
"Para que meus inimigos tendo pés não me alcancem..."

Mas adendo: tenho um amigão que vai se aposentar como escriturário pela Caixa Federal. 30 anos sem promoção, monte de transferências de agência e departamentos; porque não entrava numas de amigo secreto, happy hour e rodinha em mesa de gerentes. Não é só no jornalismo. Public relations, vulgo meio de campo, vulgo baba ovo, é imprescindível em todas as atividades.
Não consola mas explica. Seleção natural das espécies.

Elizabeth disse...

é Liu, a coisa do mal corre por ai.

Luiza, kkkkkkk,será?

Elizabeth disse...

Meu amigo Mouzar Benedito, que vocês podem localizar aí nas tags, me mandou o seguinte email:
Beth,
No livro que lancei agora - o romance "João do Rio, 45" - tem umas passagens semelhantes, dos tempos em que a vida coletiva e solidária começava a ser derrubada pelo individualismo e essa subserviência mesquinha e mau-caráter de profissionais de várias áreas. Por coincidência, num certo momento, conto a história de uma pessoa que foi encarregada de demitir a grande amiga que a levou para a empresa (não era de jornalismo). Ficção, mas totalmente baseada em fatos reais.
Abraços
Mouzar

Anônimo disse...

ahahahaha Beth bem comportada
ahahahaha A Santa Beth comungando
Não consigo nem ler o texto direito
devido ao acesso de gargalhadas
Antigamente os barcos carregavam santos. E havia até batizados com nome dos eunucos e dos cabaços
Claro que nessa embarcação deste ateu empedernido não entrava nem medalhinha.
Mas se eu tivesse essa foto antes da idade de mandar-me lançar ferros definitivamente em terra firme, faria um altar e a colocaria em lugar de destaque nas 2 pontes de comando que havia na Vega.
Mas o fundo do altar seria amarelo, do tom daquele célebre vestido
Cap Pepe

Elizabeth disse...

Mas é muito atrevimento. Eu conto uma sacanagem dessas e o Captain não consegue ler, porque morre de rir com a foto.
Pois eu sempre fui mesmo, uma garota bem comportada, há testemunhas.