De manuscritos raros a registros afetivos no correio eletrônico, a historiadora Meize Lucas fala sobre os vestígios que deixarão de existir no futuro próximo
Meize Lucas
especial para O POVO
05 Jan 2008 -
Mês passado comprei, numa daquelas charmosas livrarias do Rio de Janeiro, um livro chamado A paixão pelos livros, reunindo textos que manifestam o prazer e os amores possíveis por esse objeto. A razão da compra foi, além do título, a bela capa com a foto de uma livraria bombardeada em Londres na Segunda Guerra Mundial, na qual se vêem elegantes senhores a ler.
Na semana seguinte, em Recife, compro outro livro pela beleza da edição e pelo assunto, Suplemento Literário - que falta ele faz, de Elizabeth Lorenzotti. Trata-se de um estudo sobre o caderno lançado pelo jornal O Estado de São Paulo, em 1956. Nele encontramos a reprodução do projeto elaborado (e datilografado) por Antonio Cândido para o jornal. Livros que integram minha estante pelo gesto comum a quem gosta do objeto: o prazer de entrar em uma livraria, olhar, pegar e, principalmente, esquecer do tempo e da vida. Não sei se, correndo os olhos por algum site, esses livros estariam aqui ao meu lado. Na Internet, a gente busca o que quer. Não há lá muito espaço para o aleatório.
Não vou entrar na discussão besta e já datada sobre o fim do livro ou o mal da Internet. Sobre o primeiro, o historiador Roger Chartier já respondeu mil vezes que não, o livro não vai acabar. Além disso, basta ver as cifras milionárias das editoras e o tanto de doidos que têm por aí a rodar sebos, alguns imundos, a cheirar livros, a gastar rios de dinheiro em sites e a percorrer estantes de livrarias boas e ruins. Quanto ao segundo, seria interessante ver que o cinema provocou igual celeuma quando apareceu. Dizia-se que ele podia acabar casamentos, destruir infâncias e desviar a conduta de mulheres e jovens.
Não quero falar sobre o bem ou sobre o mal dessas mudanças. Mas sobre o que se perde. Reservo-me o direito de não falar sobre os ganhos, pois esses já são amplamente propagados (alguns de forma enganosa) e vivenciados no dia-a-dia.
Comprar pela internet é prático: não tem trânsito, vendedor ruim nem o famoso "tem, mas tá faltando". Também não há o risco de perguntar pelo livro do Mia Couto e o vendedor te pedir dez vezes para repetir o nome do autor por achá-lo meio estranho. E, com sorte, podemos comprar na promoção "a partir de três livros o frete é grátis". Ganhamos, sim. Mas perdemos (ou pelo menos diminuímos) a possibilidade da surpresa e assim sermos arrebatados. A cada dia vivemos não o nosso prazer, mas compramos o nosso conforto. E, assim, vamos suprimindo junto com os desgastes alguns pequenos prazeres.
Há também uma questão de ordem prática, que diz respeito ao meu ganha-pão. Sou historiadora. E como sabem, historiadores são um povo que vive de papel velho, coisa e tal. Entre essas velharias uma das melhores é topar com alguém com vocação para tinta e papel que tenha deixado cartas, diários e anotações espalhadas por cadernetas sem fim. Basta pensar nas cartas enviadas por Freud a Fliess e a Ferenczi, base ainda hoje para os estudos da psicanálise. É também maravilhoso ver um manuscrito e perceber o texto na poesia envolvente da caligrafia de quem escreve. Nos textos de Antonio Cândido, reproduzidos no livro citado, quase podemos ouvir (tactactac) seu surgimento. Há ainda o entrelaçamento entre a escrita e a datilografia, caso de Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa, em que, "corrigindo" à mão os capítulos datilografados, o autor nos permite espiar a refundação do texto.
Vestígios que vão deixar de existir num futuro próximo. Documentação inexistente não por falta de acervos, mas por falta de quem os produza como rastro de suas ações. As impressões de trabalho, as trocas amorosas e as construções do pensamento se apagam repetidamente no computador. Não há mais versões até chegarmos à final, logo perdemos o percurso. E o amor desaparece sem deixar mágoas impressas no mundo.
Também teremos o esgotamento de um gênero literário por falta de estoque. Fernando Sabino guardou todas as cartas enviadas aos seus amigos Helio Pellegrino, Paulo Mendes Campos e Otto Lara Resende. Publicadas, renderam um belo livro.
Os exemplos podem ser multiplicados, mas, como fica claro, não ao infinito.
Dia desses tive vontade de reler um poema enviado por um amigo, hoje distante do coração e da vida. Qualquer um sabe, menos eu - aliás, hoje eu sei -, que, se uma pessoa fica muito tempo sem acessar o tal do e-mail, ele fica desativado e perde-se tudo. E foi o que aconteceu. Colocando na busca da Internet posso recuperá-lo, mas é impossível recuperar o poema junto com as palavras que o acompanhavam, a data em que foi enviado, o porquê da sua existência na minha caixa de e-mails.
Mas quem sabe no futuro ainda não topo com ele por aí numa caixa de mensagem.
Meize Regina de Lucena Lucas é doutora em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professora do Departamento de História da Universidade Federal do Ceará (UFC)
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