segunda-feira, março 08, 2010

De volta a Saigon


Correm pelo rio as lanternas vermelhas, noite indecifrável.
Teu peito, ta poitrine, sombra, lembrança que escorrega pelos lençóis, noite de insuportável calor.
Não-cidade, burgo, ajuntamento.
Vastas solidões.
Ventiladores de teto, cortinas a voar, meu olhar vagueia e o quarto lembra: hotel em 2004, Rio de Janeiro, Rua do Catete.
Outros outubros viriam, outros estorvos, pregadores a te entregar folhetos de salvação em Copacabana.
E o belvedere de Santa, que nunca mais encontrei, mas a ladeira.
Amor? Eu me rio, como Iza, com gargalhadas gerais, porque aquele tempo já era.
Onde o manto a me proteger? A star fall?
E as gotas de chuva na noite, e a janela para a fábrica no bairro do Pari, e a janela para os edifícios de Pompéia.
Décadas.Nada mudou e tudo é já outra coisa.
Não há clemência para alguns de nós.
Não há dó nem piedade.
Apenas a literatura.
(27.12.2009)

Piva faz da vida a sua arte

Eu o via nos bares, principalmente nos bares, e chegava bradando, gesticulando, aparecendo. E me acostumei com ele, mas pouco conhecia de sua poesia. O Piva. Fui conhecendo com o passar do tempo, até que vi o belíssimo documentário de Ugo Giorgetti, Uma outra cidade, Poesia e Vida em São Paulo nos anos 60, com os poetas da geração de Piva.
Voltei a ler Piva aqui e ali. Depois, o vi no Parque da Água Branca. Não tive coragem de falar com ele, ali, sem camisa, ao sol das 11 horas, lendo um livro, um companheiro sempre perto ( sorte do Piva, ao menos nisso, pensei, um companheiro sempre por perto).
Então, fiz um poema para ele e para seu amigo de sempre, Wesley Duke Lee, hoje sofrendo de Alzheimer. Muita dor para tão grandes artistas, e para nós.
Fui procurar e achei na internet notícias sobre seus problemas de saúde e de $$. Cheguei mais perto e também entrei na corrente pró-Piva.

E neste sábado , dia 6, fui ao Viva Piva, corrente de solidariedade pelo poeta que tem Parkinson, fez uma angioplastia e passará por extirpação de próstata, e espero que encontre um bom lugar no Hospital das Clínicas.

Encontrei lá meu querido amigo de adolescência do Colégio Estadual Doutor Octávio Mendes, Edson Motta, companheiro da nossa Roda de Poesia. Fiquei feliz por encontrá-lo, como eu, ainda continuando a amar a poesia e os poetas.
Encontrei o professor Boris Schnaiderman e sua mulher, professora Jerusa Pires, dois novos velhos amigos que fiz recentemente, nem sei explicar como. Bravo casal de intelectuais de respeito, não na torre alienada, aqui embaixo, com a gente. E nos abrindo trilhas.

Velhos companheiros da geração de Piva: Claudio Willer, Bicelli, entre os que me lembro. Novos, como o escritor Marcelino Freire e o ator e dramaturgo Mário Bortolotto. E tantos outros que subiram ao pequeno palco do b_arco, em Pinheiros, para declamar as poesias de Piva, celebrá-lo e contar suas histórias engraçadíssimas. Porque o poeta é bem humorado.

Alberto Marsicano, citarista discípulo de Ravi Shankar, poeta e tradutor de poesia, tocou Coltrane, Hendrix e Raul Seixas para Piva. Edivaldo Santana, amigo dos professores, encerrou o espetáculo com sua música ricamente simples e cheia de citações.

Massao Ohno está aqui, ouvi dizerem. Não o encontrei, o editor de vanguarda da década de 60, que publicou Piva, Hilda Hilst, tantos e tantos talentos inumeráveis. Resgatei no baú agora o depoimento que ele me deu em 1994, para um projeto daqueles maravilhosos do sempre maluco criativo Tide Hellmeister. Que começou a fazer capas de livros com o Massao, mas me disse que nunca entendeu nadica das conversas intelectuais do pessoal. Esse grande artista que foi ali e volta já, amante dos surrealistas, amaria também o clima do Viva Piva.

Há quanto tempo eu não sentia esse calor. Esse revival de tempos em que tudo era Nós, e não Só Eu. Exato pensamento de Massao Ohno naquele texto de 1994. Ele escreveu Devaneios ao crepúsculo especialmente para o Tide, coroando seu belísismo depoimento.

Pois é meu caro. Como diria Drummond, ‘o primeiro amor passou, o segundo amor passou..et La vie continue’.Trinta anos se passaram e tudo ficou muito mais caótico. Tivemos que criar técnicas mais sofisticadas de sobrevivência, perder a ternura sem endurecer, aprender a dissimular sem mentir, a responder com perguntas, a proferir sem nenhum eco em resposta. Somos os mistificadores do caos. Que os deuses nos poupem. Somos uma hipótese sem tese. Indemonstráveis, portanto.

E mais:

Músicos, poetas, pintores, artistas, no geral e no particular, insurgi-vos! O mundo não é apenas um vasto circo de variedades, de consumo frenético. Viver é um ato prodigioso, uma dádiva a ser desfrutada, segundo a segundo, até a finitude.


Este o espírito da geração de Roberto Piva.

Aqui, alguns textos que podem dar uma ideia da bela noite de solidariedade, afeto, encontros e reencontros de gerações de doidos de pedra y loucos varridos.

Viva eles! Viva nós! Viva Piva!

Alberto Marsicano

Num transatlântico espanhol, sob o olhar pasmo dos passageiros, arranquei as folhas de Paranoia (obra prima de Piva), coloquei cada uma delas numa garrafa (que arrumei na cozinha) e arrojei-as ao alto mar, proferindo a conjuração poética: 'O pensamento profético de Piva singrará os Sete Mares'."

E textos de Roberto Piva:


Tudo o que vocês chamam de história não é senão o nosso plano de fuga da civilização de vocês.
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Se o coito anal derruba mesmo o capital? De certa forma sim. Se a sociedade inteira for homossexual, acaba a reprodução de mão-de-obra e, portanto, acaba o capital. Não só o capital, a espécie humana. O que talvez fosse interessante. O herdeiro seria a onça pintada que, comovida, agradeceria.

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Poesia é iniciação, uma linguagem hermética. Os primeiros poetas eram xamãs e curandeiros, assim como o teatro na Grécia antiga era um teatro de cura. O caráter centáurico de minha poesia consiste em que ela se lança do fundo do mundo mágico até as esferas mais altas e mais livres
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Existem dois tipos de leitores: um que acumula, enciclopedicamente,conhecimento na cabeça, e isso não serve para nada. E outro, que transforma aquilo que lê em seu sangue, em vida. Eu sou um leitor assim: tudo que li, transformei em minha vida. Segui aquela frase de Octavio Paz: “Poesia é a subversão do corpo”.
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Só acredito em poeta experimental que tenha vida experimental. Não tenho nenhum patrono no “Posto”, nem leões-de-chácara & guarda-costa literários nas redações de jornais & revistas. Nada mais provinciano do que os clubinhos fechados da poesia brasileira, com seus autores-burocratas tentando restaurar a Ordem & cagando Regras que o futurismo, dadaísmo, surrealismo & modernismo já se encarregaram de destruir.
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Com a poesia domada, a ditadura é da informação. O monopólio informativo favorece à subordinação administrativa em seu papel de controle social. A imagem do Estado policial se trata menos de uma repressão franca e policial que de uma opressão insidiosa caracterizada pelo domínio do conjunto dos comportamentos.