Leoonardo Wen/Folha Imagem
Boletim eletrônico mensal
do Nu-Sol - Núcleo de Sociabilidade Libertária
do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP
no. extra, maio de 2006
www.nu-sol.org
Não foi somente mais uma rebelião nos presídios. Há algum tempo já não se trata mais disso. No dia 11 de maio, quinta-feira, três dias antes do dias das mães, começou uma rebelião em favor de benesses à elite do PCC (Primeiro Comando da Capital ou Partido do Crime), e acertos de contas com o governo paulista e sua polícia, terminando na segunda-feira, 15 de maio, após mortes, incêndios, paralisações forçadas de escolas a empresas, boatos e mais boatos, e negociações concluídas com ordem passada pelo PCC a todas as prisões rebeladas para voltarem à normalidade.
Tudo começou em São Paulo e rapidamente se espalhou para outros estados (Mato Grosso, Espírito Santo, Paraná). Desta vez a rebelião não se restringiu às prisões de adultos na capital ou no interior. Ela vazou. Atingiu a Febem-SP e atravessou as cidades realizando execuções de policiais, incendiando ônibus, demonstrando força amedrontadora aos cidadãos apavorados.
A metrópole parou na tarde de 15 de maio. As pessoas corriam para suas casas e punham-se diante dos televisores ouvindo representantes governamentais, intelectuais, coordenadores de ONGs, anchor-men esbaforidos, todos querendo mais punições, mais reformas penais e medidas enérgicas contra o crime organizado. Eles quase pediram pena de morte quando exigiram prisão perpétua para encarcerar bandidos perigosos para sempre.
Com tamanho autoritarismo, muitas vezes travestido de defesa do bom cidadão, eles fortalecem a emergente configuração atual em que presos organizam-se numa estrutura análoga à do Estado, mas ilegalmente. Como velhos ressentidos estes paladinos da justiça não se cansam, também, de acusar os defensores dos direitos humanos como responsáveis pelo atual estado de ilegalismos, confundindo, propositalmente, a atuação destas organizações que combatem pocilgas com proteção ilegal a criminosos.
Aproveitam-se da situação para apavorarem mais ainda os espectadores e os navegadores de internet, identificando uma força a ser abatida, e pretendendo limpar o terreno para a continuidade dos fascismos. Eles pedem que o totalitarismo do PCC seja enfrentado pelo fascismo de Estado. Entretanto, no meio disso tudo aparecem as vozes equilibradas, os perfis democráticos, os planejadores de uma novo sistema em nome da justiça e da democracia. Reabre-se, então, o banquete de ONGs e institutos que vivem das desgraças da prisão propondo novidades por meio de propostas justas, na justa medida em que consagram o controle unificado, a coordenação institucional ou a fiscalização mútua.
Noutras ocasiões o PCC fazia rebeliões para afirmar seu poder diante dos prisioneiros buscando acabar com a luta pela hegemonia entre as diversas facções organizadas. Mostrava força internamente numa guerra objetiva, ao mesmo tempo em que iniciava tentativas de gestões diplomáticas com o Estado. Agora, controlando as prisões a grande massa encarcerada cuja maioria se encontra em São Paulo , já estabelecido na Febem e articulado com os cidadãos livres (ex-prisioneiros, parentes de encarcerados, novos militantes) ele quer mais. O PCC busca legitimidade deflagrando uma iminente guerra e a suspendendo mediante negociações. Ele diz, à sua maneira, quantas organizações legais precisam de seu ilegalismos para continuar lucrando.
O PCC não pratica terrorismo. Ele procura uma via institucional para estruturar a representação ou o comando militar sobre a população encarcerada (seja ela composta exclusivamente de prisioneiros ou ampliada, com funcionários e técnicos, pois não há prisão em que prisioneiros e seus controladores não estabeleçam relações ilegais com ou sem telefones celulares). Não há crime sem legalidade e empregos úteis, sabemos há muito tempo! Mas a quem interessa a revelação dos legalistas que atuam neste fluxo de ilegalismos?
No início da noite de segunda-feira, depois de encerradas as negociações, as autoridades governamentais diziam que tudo estava sob controle. As autoridades intelectuais, pela televisão e imprensa, falavam de mais reformas no sistema penal, sobre a necessidade de ações enérgicas, como foram usadas as comunicações para propagar boatos, e mais uma outra vez de tolerância zero. O PCC avisou que faria uma ação em mais de um estado da federação e fez. Exigiu negociações com governos e as obteve. Comprometeu-se a encerrar as rebeliões e cumpriu. E ainda chamam o PCC de integrante do crime organizado? E ainda acham que é em nome do combate ao PCC que se deve investir mais em segurança?
O PCC mostrou que já é um Estado que governa sua população em diversos territórios de aprisionamentos chamados prisões, febems, favelas e periferias, nos bairros, cidades e estados, independentemente de continuidades fronteiriças. O PCC está organizado de maneira centralizada como um partido único e governa determinando ações descentralizadas visando a garantia de sua elite governamental e de seus súditos encarcerados. O PCC funciona por meio de pagamento de impostos, recrutamento de homens-bomba (não similares aos terroristas mas devedores que saldam dívidas atuando como sicários), articulação de milícias, tráfico de drogas, incluindo suas imediatas conexões legalizadas, retemperando as ilegalidades e escravizando seus devedores.
O Estado totalitário PCC assenta-se em dispositivos estratégicos bélico-diplomáticos, estruturados em um discurso familiar cujo ápice de sua consecução e execução está nas cabeças cortadas exibidas como troféus. Este é o expediente reservado aos traidores do partido. As degolas escancaram definitivamente a rigidez hierárquica combinada com afetuosas familiaridades que agregam irmãos e primos, circunscrevendo a obediência diante da autoridade superior para obter proteção e propagar assujeitamentos.
O PCC como Estado, que já pacificou as prisões com muita guerra, com seu estatuto e estrutura militarizada, exige paz no exterior, mostrando sua força com atos de violência que ensaiam uma guerra. O Estado legal e legítimo só têm uma maneira de lidar com este Estado totalitário: fazer negociações circunstanciais ou simplesmente dizimá-lo. A guerra e os novos tratados de paz já ultrapassaram os muros das prisões, avançaram sobre as periferias das grandes cidades e encontraram fluxos ilegais em ramos respeitosos da economia.
Não se acaba com o tráfico com mais repressão. Já constatamos isso nos últimos 20 anos, desde que se tentou justificar a ação internacional contra o narcoterrorismo e o narcotráfico na América Latina, Ásia e Oriente Médio. Muito menos com tolerância zero ou penas alternativas. Estas somente propiciaram o crescimento estatístico dos indivíduos penalizados, das ações criminalizáveis e da burocracia penal. Hoje em dia, quando nem o Exército controla o seu monopólio legal de armas, a indústria do controle do crime cresce e com ela os lavadores de dinheiro, as conexões ilegais, idem. Idem, idem, idem.
O fluxo moralista-repressor aumenta de velocidade e de densidade. Não se fala mais em liberar as drogas, este golpe mortal nos ilegalismos atuais que passam pelas prisões para adultos e jovens definitivamente conectadas, pelos vínculos ilegais reconhecidos como inevitáveis e pelas propostas fascistas constatadas no cotidiano das mídias. No horizonte só mais guerras em cujos percursos encontraremos emboscadas, ciladas, silenciosos extermínios e prováveis reaparições de esquadrões da morte.
Na era da globalização transita quem manda e pode, como sempre foi no capitalismo, sob o Estado-nação ou o vigente consórcio de Estados. As mães continuarão chorando lado a lado, num soturno velório. Uma sobre o esquife do filho policial; a outra sobre o do seu filho bandido. Ambos vindos do mesmo lugar: um tido como sangue bom; outro como sangue ruim. A dor aumenta, o sangue quente escorre, encharca nossos pés. Isto não se sente pela televisão ou rádio. É a vida nos campos de concentração que precisa continuar para que os ilegalismos dos bacanas não cessem. Nunca houve capitalismo sem ilegalismos e o PCC é somente um parceiro ilegal no capitalismo no Brasil. Será que só no Brasil?