sábado, fevereiro 07, 2015
No Escritablog, minha crônica: Pepe Velo, um cavalheiro da utopia.
Pepe Velo, um cavalheiro da utopia
Elizabeth Lorenzotti
No sábado 31 de janeiro, na Casa do Concelho, cidade de Celanova, foi criada a Asociación Cultural Xosé Velo.
Não, o parágrafo acima não tem erros de português. Está escrito em galego, e refere-se a uma cidade da Galicia onde nasceu o “intelectual celanovés, ibérico e universal” Xosé Velo Mosquera, como assinala o convite que recebi pela rede social.
Mas quem é este homem cujo centenário vai se comemorar em 2016? Eu contei sua historia num conto/reportagem/memória publicado aqui nesta Escritablog (e digo que vale a pena conhecer este homem):
(http://escritablog.blogspot.com.br/2013/11/un-e-nengum-conto-e-reportagem-memoria_29.html)
Este homem que tive a sorte de conhecer na minha adolescência, em São Paulo, foi a figura principal do sequestro do navio Santa Maria, com outros companheiros portugueses e espanhóis, para protestar contra as ditaduras de Franco e Salazar, em 1961.
Falar hoje em sequestros é associar acontecimentos sanguinários, violentos. Não foi absolutamente o que se deu com o Santa Maria, onde – além de não haver violência, os passageiros de segunda classe tiveram acesso à primeira e o grupo de sequestradores, que se tornou foco de atenção internacional – lavou toda a louça ao desembarcar no porto de Recife, após um acordo com o então presidente do Brasil Janio Quadros, que os asilou.
Pois este homem, poeta, professor, revolucionário romântico, que fez da sua vida a sua arte e sua política, coerentíssimo, já morreu há muitos anos, em 1972. E faria 100 anos no próximo 2016. Sua brilhante historia está sendo resgatada pela recém-criada Asociación Cultural Xosé Velo, pois mesmo em sua própria terra foi sendo esquecida, apagada, eclipsada.
Leio o texto abaixo num ótimo artigo do galego Xosé Gonzáles Martínez que tem como titulo “O 3 de febreiro cúmprense 54 anos do remate do secuestro do trasatlántico Santa María.” (Sim, neste mês de fevereiro o sequestro completa 54 anos.)
“Penso que houbo una maquinaria de ocultamento da súa figura, do seu papel no secuestro. Primeiro no Franquismo, pero veu a democracia e seguimos na mesma", subrayaba Paco Macías, uno de los impulsores de la asociación, conjuntamente con el celanovés Aser Álvarez, que reiteró que el colectivo abierto a todos los vecinos es "recuperar a súa figura e a súa extensa obra, a maior parte inédita", matizó en referencia a las más de 30 carpetas con cientos de poemas, ensayos, cartas y discursos que conserva su hijo, Víctor Velo.”
Mas fico pensando, aqui e agora, que sentido há em falar sobre um revolucionario e suas utopias em um mundo sem utopias e à beira de catástrofes cotidianas e gerais?
Quando o medo, a depressão e a impotência nos cercam, monstros ameaçadores. Se o século XXI é absolutamente incompatível com aqueles anos 1960, quando nem o mais competente profeta imaginaria o cenário atual.
Vejam: quando o navio foi entregue às autoridades brasileiras, no porto de Recife, Pepe Velo colocou nos altofalantes a Ouverture 1812, de Tchaikovsky, como podemos saber continuando a ler o texto do jornalista galego:
“O mesmo acto de entrega da nave ás autoridades brasileiras foi dunha estética pouco común, pero que Pepe Velo soubo materializar en todos os extremos. Antes de guindar a áncora, escoitouse polos altofalantes, a todo volúme, a Obertura 1812 de Txaikovsxki, nos momentos finais, canda o repíque das campás, as descargas de fusilería e as salvas de artillería se mesturaban cos berros do pobo pola victoria. Arriouse a bandeira republicana cos membros do DRIL formados, mentres moita xente cantaba a “Marsellesa”.”
Nosso cavalheiro morou em São Paulo até morrer, em 1972, onde o conheci, na livraria Nós, editora Galicia Ceibe, bairro do Paraiso – onde publicou a grande poeta galega Rosalia de Castro e pretendia publicar sua própria obra: poemas, livros infantis, análises políticas. Tudo de melhor. .
Uma mente brilhante, um coração corajoso e terno, uma grande potência da palavra. Houve vários motins a bordo e, segundo contou o jornalista português Miguel Urbano Rodrigues, que fez parte do comando, ele “enfrentou sem armas o gentio enfurecido e dominou-o com palavras. Mas de uma maneira rara, sem demagogia, sem ameaças, com estranho calor humano. Os tripulantes ficaram envergonhados, as mulheres choraram”.
Conta-nos o jornalista galego Xosé Gonzáles Martínez que “esa oratoria que caracterizaba a Pepe Velo foi a mesma que levantou o entusiasmo e o aplauso de máis longa duración dos asistentes ao 1º Congreso da Emigración Galega celebrado en Buenos Aires en 1956”.
E por que falar de um cavalheiro da utopia em tempos tão sombrios? Volto a me perguntar. É quando leio o poema que a Associacion postou na sua pagina no Facebook. Pepe Velo o escreveu pouco antes de sua morte (tinha câncer nos pulmões) e se chama Esperança.
É a utopia que nos faz caminhar. Espero que caminhemos, tateando para escapar das trevas e fazer, de novo, tempos em que cavalheiros e damas da utopia sejamos todos nós.
(O poema começa assim, na minha tradução)
“De onde me vem o fôlego para cantar tanta esperança?”)
ESPRANZA
“Malia o dente que come a semente” (dito popular)
(malia pode ser traduzido por apesar)
De donde me ven o folgo
para cantar tanta espranza...
Ai o ámbito propicio
Ai a axeitada labranza
Ai a semente no sulco
endexamais devorada
e as oportunas regas
e a graza da poupanza
Ai a terra, eterna virxe
milenios a deflorala.
Ai a colleita pra todos
a matar toda-las fames...
E os soños sen pesadelo
Ai ! o soñar acordado!
Inercia de quen vai indo
Graza eterna de ir chegando
Malia quen endexamais algo dera
Malia quen sen consolar chorara
Malia quen para chegar espera
Malia quen para viver matara
Pois que perguntas, xa sabes
de donde me ven o folgo
para cantar miña espranza :
Da vison do futuro
anque sempre se chega,
endexamais se alcanza..
O coletivo cultural criado agora em homenagem a Pepe Velo pretende editar alguns de seus melhores trabalhos, criar uma pagina na web com todo tipo de material sobre sua figura e possivelmente um audiovisual biográfico. Também existe a ideia de fazer um monumento em sua cidade natal, através de um crowdfunding.
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