domingo, maio 13, 2012
Quem puxa aos seus não degenera: Maria Julia de Souza, Walter Franco, Cid Franco
Reprodução de texto publicado em 24 de março de 2009***
*Minha vó materna, Julia, ficou cega após um parto.
Tia Judith, 94 anos, lá de Poços de Caldas, me lembrou hoje, domingo, que vovó perdeu a visão uma noite, na sua casa do Brás, em São Paulo, enquanto ouvia uma serenata: tocavam Branca.
Branca, valsa de Zequinha de Abreu, aqui com Heryck Santos, tirei do You tube, numa linda versão de Dilermando Reis. Heryck, músico que conheci agora, tocou à noite numa pracinha de Livramento, que talvez se pareça com aquele antigo bairro paulistano do Brás.
Mulher guerreira, aprendeu a ler em braile já velhinha, ajudou a me criar, tomava minhas lições, passava roupa, fazia biquinhos de crochê em toalhas, sim, fazia. A cada dia, ela dizia que "enxergava" uma cor: hoje tudo azul, amanhã tudo vermelho, não me lembro que cores gostava. Olhos perfeitos, linda e sempre bem arrumada, quando saia com minha mãe para qualquer lugar, perto ou longe.
E tão generosa.
Sempre morou conosco. Em Poços de Caldas, eu bem pequena, ela tinha apenas dois vestidos. Não éramos exatamente bem de vida. Bateu à porta uma pessoa necessitada e ela falou para minha mãe doar um deles.
E minha mãe disse: "Mamãe, a senhora só tem dois, como é que vai ficar com um só?"
"Ah Nilde, depois você costura um pra mim, né?"
Nunca esqueço da resposta dela a um médico. Num retorno, o homem perguntou se estava melhor. Vovó respondeu: "Sim graças a Deus".
"Graças a Deus nada, graças a mim", retrucou o delicado profissional.
Quando vovó voltou novamente, à mesma pergunta respondeu:
"Estou melhor sim, graças a Deus e ao senhor".
Sabedoria da sobrevivência de uma alma delicada nesse mundo...
Outra que a tia Judith contou: Estavam a vó e minha mãe na igreja, mamãe se afastou para ir ao altar e quando voltou o padre reclamava com a dona Julia: ela estava rezando de costas pro santo. Explicada sua cegueira, o padre pediu mil desculpas...(mas que padre tonto, quem é que iria entrar na igreja pra ficar de costas pro santooo??comentou a tia Judith)
E mais: num carnaval de rua em Poços, minha avó grudada no laço do meu vestido e eu escapei, ela não notou. Eu era uma peste. Quando se vê, ela estava segurando no cinto de um homem , que, depois das desculpas, respondeu: "Pois eu estava aqui pensando, é com essa que eu vou pra Maracangalha".
Adorava ouvir rádio: novelas, programa da Ave Maria, às 18 horas, colocava um copo d'água em cima do rádio pra benzer.
Especialmente ficou fã, já aqui em São Paulo, do Cid Franco, que tinha, segundo lembro, um desses programas. Gostava tanto que pediu a mamãe para escrever a ele. Cid Franco respondeu e mandou junto um livro dele. Quem leu para ela? Deve ter sido minha mãe.Tenho por aqui, preciso achar, o livro e a carta.
Cid Franco, me lembra o querido amigo e companheiro de tantas lutas, Davi de Moraes, era deputado pelo Partido Socialista, ele o conheceu. Quando a Assembléia era naquele prédio lindo do Parque Dom Pedro, existia uma deputada destemperada e anticomunista ao extremo chamada Conceição da Costa Neves, que andava com um chicote, e chegou a declarar que iria chicotear o Cid Franco.
Davi diz que ele fez um discurso tão incrivel na tribuna que desarmou a mulher.
Disse também que Cid sempre foi ligado nas coisas espirituais.
Minha avó Julia está sempre comigo, assim como minha mãe. Ela se foi quando eu tinha 15 anos, mamãe há seis anos.
Anos depois, vim a saber que Walter Franco, esse admirável músico, filósofo, poeta, compositor, cantor, é filho do Cid Franco.
"Quem puxa aos seus não degenera" é uma música linda dele.
"Coração Tranquilo", de 1978, é outra que só anos depois vim a entender, quando a professora de Tai Chi disse: "mente quieta, coração vazio".
Tudo é uma questão de manter a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranquilo, repete o mantra da música de Walter Franco, que canta aqui com seu filho Diogo. A coisa mais difícil, mas não impossível.
A vó Julia gostaria de conhecer o Walter. Especialmente gostaria dessa "Quem puxa aos seus não degenera", como eu gosto.
Que bela história familiar, delicada como Maria Nilde. Fiquei com saudade dela.
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