Rose Marie Muraro - física e economista, feminista histórica
Rose Marie Muraro - A palestra deve ter perto de dez anos, mas é bem atual
“Leia sem preconceito”. Esta frase apresentava o jornal Brasil Mulher, em fins da década de 1970, em um cartaz para ser afixado nas bancas de jornal. Tratava-se de um jornal alternativo, que tinha à frente Terezinha Zerbini, do Movimento Feminino pela Anistia, feito por jornalistas e militantes de esquerda, ex-presas políticas.
O cartaz foi feito porque os jornaleiros não expunham o “Brasil Mulher”: o que seria aquilo? Um jornal falando de mulher, mas sem loiras e gostosas na capa? Muito esquisito. Não era um jornal que se dizia feminista, feminista era o "Nós Mulheres". Mas tratava dos mesmíssimos assuntos: aborto, falta de creche, violência doméstica, direitos reprodutivos, aborto e sexualidade, a vida das mulheres na periferia das urbes, no campo, falava de democracia - ainda estávamos na ditadura. Havia também alguns colaboradores homens.
Um trecho do primeiro editorial do "Brasil Mulher", de 9 de outubro 1975.
“Não desejamos nos amparar nas diferenças biológicas para desfrutar de pequenos favores masculinos, ao mesmo tempo que o Estado, constituído de forma masculina, deixa-nos um lugar só comparado ao que é destinado por incapacidade de participação ao débil mental.
(...) Queremos falar dos problemas que são comuns a todas as mulheres do mundo. Queremos falar também das soluções encontradas aqui e em lugares distantes; no entanto queremos discuti-las em função de nossa realidade brasileira e latino-americana.
(...) Queremos usar a inteligência, informação e conhecimentos em função da igualdade e, desde já a propomos, como equidade entre homens e mulheres de qualquer latitude."
Hoje o mundo mudou, tudo mudou. Mas a essência dos problemas da condição feminina continua a mesma, e a incompreensão sobre, aparentemente até aumentou. Com a afluência da sociedade de consumo, do culto ao corpo, tudo piorou. Entretanto, a mais difícil e longa das lutas continua, com uma nova geração de bravas (os) lutadoras (es). Enfrentando e renovando velhíssimas discussões – que já queríamos ultrapassadas no século 21, e colocando outras.
Foram tantas as conquistas, e especialmente no século passado, que as filhas deste século, na maioria, nem se dão conta: já nasceram com muitas coisas mudadas para melhor. Mas muitas continuam a ser assassinadas por maridos, amantes, namorados que não se conformam com o fim das relações (vide famoso caso Pimenta Neves, homicida condenado e em liberdade), continuam os espancamentos, e a situação da mulher no Oriente Médio vai mal, e a disparidade salarial ,etc.
Este blog, no ar desde março de 2006, muitas vezes fala sobre a condição feminina. E, como sua autora é jornalista, se detém em aspectos da profissão. Hoje, cerca de 50% das redações correspondem a funcionárias do sexo feminino. Portanto, muito mudou desde início dos 1970, quando mulheres ainda eram proibidas de trabalhar na redação do Estadão, por exemplo. Elas começaram a entrar, a se formar nas universidades, a mudar o perfil da profissão. Hoje, entretanto, a velha mídia impressa conta com muito menos de um terço de mulheres como colunistas dos assuntos considerados masculinos: política e economia.
E atenção: aqui não digo que mulher no poder significa um mundo melhor. Depende, é claro, do nível de consciência e de ética da mulher. De que adiantam Tatchers num mundo como o nosso? Mulheres torturadoras do exército norte-americano no Iraque? Articulistas alinhadas ao pensamento arcaico?
Mas é claro que mulheres com outro ponto de vista sobre a vida e sobre a sobrevivência da espécie, sobre o consumismo, sobre alternativas de gestão. Enfim, mulheres com uma nova consciência, aí sim, fazem a diferença.
Então por que, no século 21, com tanto “progresso”, continuam poucas mulheres na política, na economia, na liderança dos movimentos mundiais? E nas Artes: na música erudita, nas bandas de rock e de blues, etc .etc. “Até o século 20, entendia-se por que não havia mulheres de destaque em todos os setores. Mas hoje?”, argumenta um amigo que se considera dos mais feministas.
O papo veio a propósito da coletiva de Lula aos chamados “blogueiros progressistas” -- a nova e importante frente que tem contado pontos preciosos na defesa da liberdade de expressão e na denúncia da manipulação das notícias pela imprensa tradicional.
Havia mais de uma dezena de blogueiros, foram convidadas quatro blogueiras e apenas uma compareceu via internet. Mas, comparecendo ou não, inicialmente, fiquei pensando: a proporção de 4 para 10 deve ser creditada , claro, à menor participação política da mulher também na Internet. Como comentou o grande Laerte, não sei se exatamente nessa entrevista linkada: “As pessoas estranham que tem pouca mulher na política e fazendo charge, cartum, humor de um modo geral. Isso tudo tem um motivo. Elas estão sendo ensinadas desde pequenas. Não tem nenhum motivo real que impeça elas de fazer qualquer coisa que um homem faz”.
Mas a coisa não era bem assim. Existem várias mulheres na blogosfera, e há muitos anos, com blogs feministas ou não, que participaram ativamente da campanha eleitoral, e pela esquerda. Estariam, então, incluídas no chamado rol dos “blogueiros progressistas”, de alguma forma.
Eu estive na primeira reunião nacional desse movimento. Havia muitas mulheres participando, ouvindo, debatendo. Mas poucas tão famosas quando os jornalistas líderes da blogosfera. Ninguém está negando o papel importante deles na nova mídia. Apenas constatando que Laerte tem razão, que ainda há poucas liderando os vários setores da vida humana.
Mas agora concluí: as que surgem e se firmam na internet, mesmo fazendo política, não a fazem da maneira tradicional. A política institucional- que está caindo de podre e pelas tabelas –não é a única via de gestão da humanidade. Acho que por isso essas mulheres blogueiras não foram convidadas para a coletiva histórica: não são consideradas blogueiras “políticas”. Eu mesma, que navego bastante, fiquei conhecendo vários interessantes blogs dessas mulheres agora.
Política se faz de várias formas, e não apenas institucionalmente, nos partidos, graças aos deuses e deusas. Há movimentos, centenas de milhares deles espalhados pelo mundo: que, sim, pressionam os chamados representantes nas chamadas democracias representativas que tão pouco representam. Até agora, não pode ser de outra forma, mas quem disse que as coisas não podem mudar?
E quem pode mudar todas as coisas?
Recentemente fiz parte da banca de TCC (trabalho de conclusão de curso) de Jornalismo, na PUC-SP. A formanda Gabriela Moncau escreveu o excelente livro “A Segunda Luta- O feminismo e as organizações de esquerda no Brasil”. Que interroga por que, ainda no século 21, a questão é vista, ainda, pela esquerda, como uma luta secundária.
Sempre houve grandes dificuldades, ao longo da História recente, na relação entre esquerda e movimento feminista. Mesmo, e especialmente, sendo suas representantes sempre alinhadas à esquerda. Torço para que o trabalho seja publicado, é bastante esclarecedor. Gabi contou que, quando entrevistou a feminista histórica Rose Marie Muraro, que vocês podem conhecer nos vídeos acima, e falou sobre o tema de sua pesquisa, ela exclamou: “Mas ainda está assim?!!”
Pois é, ainda. Eu até tive vontade de dizer a Gabi, moça inteligente, militante bem intencionada da esquerda: ”Sai dessa, é uma luta muito inglória”. Mas, pensei, ainda bem que ela e milhares de Gabis existem e persistem pelo mundo afora, passando pra frente a eterna bandeira. Sorte da humanidade.
Acompanhei uma extensa discussão pro e antifeminista em alguns blogs desde a semana passada. Os mal entendidos bem e mal intencionados, a incompreensão sobre o feminismo e suas várias correntes, agressões a feministas por serem agressivas e “radicais” -- de minha parte, eu sempre gostei dos radicais, vão à raiz e se não fossem os muitos radicais da grande História e da História cotidiana, estaríamos estacionados bem mais atrás do que estamos. Machistas masculinos e femininos em bloco contra feministas e contra homens que as defendem. Isso tudo significa que as discussões no campo do gênero estão bem mal na sociedade como um todo, e num recorte especial, naquele setor considerado mais esclarecido e politizado.
Não é novidade.
Novidade, é, sim, o assunto ser debatido amplamente pela internet. Se nos anos 70 estava restrito a pequenos jornais e à militância de grupos de esquerda, no século 21 começa a ocupar o espaço virtual, que é absolutamente mais amplo. Entretanto,a qualidade é outra. É melíflua a rede, no sentido de fluir, mas nela ninguém está obrigado a arrematar, concluir, avançar.
Acho, por isso, um pensamento meio mágico falar-se em “construção do conhecimento” em blogs. Informação é uma coisa, conhecimento é outra.De qualquer forma, está posta uma discussão, e é nova na chamada “nova blogosfera”.
Por isso, não me aprece que se queira instaurar (como diziam no tempo da ditadura) a cizânia dentro do movimento dos meninos blogueiros progressistas com essa discussão. E, em conseqüência, que por trás dela haveria objetivos inconfessáveis e gente agindo nas sombras.
O que existe, apenas, é um dado novo para muitos: o movimento feminista não morreu, não é anacrônico, superado, como querem muitos (as).Se assim fosse, não teria despertado tantas paixões. O objeto de sua luta persiste e insiste porque as causas igualmente persistem e insistem.
A rede vem provar que nem os jornalistas detêm o domínio dos blogs, nem os acadêmicos. Ela é de todos, não é de ninguém.A internet não tem controle. Uma visão mais abrangente detectará que muitos outros blogs, feitos por mulheres, não necessariamente lidando com a política institucional, estão, sim, fazendo política, e das mais necessárias.
Ler sem preconceito porque é prescrição livre, não?
ResponderExcluirTema delicado, Beth, que mexe com transformações e resistências, tudo acontecidas num intervalo curto de tempo. É quase automática a associação com disputa de espaço (ou perdas de espaço - que no fundo é associado a perda de "poder"), noções de hegemonia típicas da sociedade competitiva e a própria resistência de setores femininos a defender territórios que julgam "próprios", ou exclusivos ou privilegiados. Condicionamento ideológico, como vc observou no seu texto. Tudo, enfim, como sempre, transita pela seara da política. E nem entramos na questão de classe que distingue mulher de mulher, embora não seja esse o foco que você pretende, mas mulher como categoria social, como a face outra da moeda.
Uma matéria interessante pra você abordar seria, por exemplo, sobre as nuances que unem ou diferenciam as expressões do feminismo na Europa (mais cultural, de autonomia individual/espiritual)e nos EUA(mais utilitária, de igualitarismo público/profissional). Talvez essa discussão ainda se estenda até os dias de hoje, ou tô falando besteira?
No que você foi cutucar, muié?
E antes de tudo, até motivação extra pra invadir esse post "macho paca", nossas homenagens a Rose Marie Muraro, que comprou brigas quando não tinha esse politicamente correto (hipócrita, como todo o correto) pra brigar.
ResponderExcluirEncarou tempos barra-pesada e (na expressão à época) mandou ver. Me lembro de uns óculos de grau fundo de garrafa, um charme incrível no falar e nenhuma concessão ao medo.
Não ter medo. Essencial sempre, pra machos e fêmeas.
É isso Liu, grande Rose Marie Muraro.
ResponderExcluirLiu, não tenho a menor ideia de a quantas anda o feminismo na Europa e nos EUA. Mas ouvindo aqui a nossa Rose Marie, fiquei contente de ver esta mulher hoje com 80 anos, lúcida e brilhante,nadadora mor contra a corrente, falar da nova consciência- tem mais videos dessa conferência no youtube.
ResponderExcluirAo mesmo tempo, com isso tudo, fiquei tristissima porque constato, mais uma vez, que é sempre um passo à frente e dois atrás, nessa longuissima historia que a espécie vai cons(des)truindo.
Melhor recolher-se à literatura de Ms.Wolf, de Orlando, por exemplo, outra remadora contra a corrente com sua delicadeza e força.
A arte salva.
PS- gostei muito do abecedário.achei o Z bastante cristão, but so its Crhistmas, and waht have we donne?
Recaídas, lady, ninguém passa impune pelo cristianismo, mesmo chinas colonizados. Acho que vontade de trazer de volta os old good years (que nem foram aquela maravilha, mas sempre eram infância).
ResponderExcluirRose, 80 anos, puxa... Velhos guerreiros não envelhecem nunca.
Beijo.
sem problemas com recaidas, china colonizado
ResponderExcluirkkk
bjs
Beth, Liu
ResponderExcluirComo eu disse no feicibuque, o termo é tão infeliz que me recuso a repeti-lo. Mais agressivo e ofensivo do que "petralha" ou "tucanalha".
Mas essa briga foi emblemática. Muito machista enrustido mostrando a cara, muita feminista "radical" (ou, como quer o Alex Castro, "female supremacist") também.
Não vou tomar lado na briga entre os chamados (ou não) "blogueiros progressistas". Eles são brancos, que se entendam. A meu ver, aquilo foi apenas uma comédia de erros, e só serviu pra atrapalhar mais ainda a discussão sobre a questão de gênero.
Ok, chamou a questão pra berlinda, mas de uma forma caricatural. Por isso foi q disse que é melhor esperar a poeira baixar primeiro. Tá todo mundo muito armado, de lado a lado. Quem tentou ter uma atitude mais coerente e cordata acabou sendo massacrado.
[]s
Mario
PS: Beth, acabei o trampo ontem de tarde só. E ainda tive que socorrer "um valor mais alto que se alevantou".
PS2: Inda despongo pro litoral pra tomar uma(s). Obs do PS: cerveja pra mim é entidade contínua, não discreta.
Beth, tudo bem?
ResponderExcluirMuito pertinente o teu post e muito mais "cabeça fria" que os outros tantos que li sobre o assunto.
Quanto ao fato da blogosfera servir para informar e não repartir conhecimento é uma coisa que venho dizendo a tempos. A impressão que tenho é de que a blogosfera por aqui virou uma guerra de egos e acho tudo muito triste.
Ainda frequento alguns blogs, mais pelos comentarios que pelos posts. Pelo menos se descobre o que pensa uma faixa mais favorecida da sociedade.
Marião, boa cervejada na praia, é o melhor fazer nesta época e nestas alturas.
ResponderExcluirSamya, acho que vai demorar pra mudar essa coisa de ego, principalmetne quando se tratar de briga entre jornalistas e acadêmicos.
A discussão principal, no caso, virou pivô.