Um dos principais historiadores da música popular brasileira, José Ramos Tinhorão diz que a produção de canções se restringe cada vez mais a nichos e critica o silêncio da academia em relação à sua obra
LUIZ FERNANDO VIANNA
DA SUCURSAL DO RIO
Quatro meses antes de, em já famosa entrevista à Folha realizada em 2004, Chico Buarque afirmar crer na possibilidade do fim da canção, José Ramos Tinhorão dissera o mesmo à mesma Folha. Foi bem menos lido e mais atacado do que Chico, naturalmente.Aos 82 anos, Tinhorão parece não ter se desviado em nada do percurso que começou a trilhar em 1958, quando recebeu a incumbência de escrever sobre música no "Jornal do Brasil" e se tornou um dos mais originais frasistas, ensaístas e historiadores da cultura popular do país. Quando se debruça sobre um assunto, chega muito antes dos outros ou já chega imprimindo uma visão absolutamente peculiar.Tinhorão lança mais dois livros, alcançando a marca de 28: "A Música Popular Que Surge na Era da Revolução" (ed. 34, 176 págs., R$ 32) relata, com fartura de informações, o que aconteceu na música em Portugal e na França por conta da Revolução de 1789; "Crítica Cheia de Graça" (ed. Empório do Livro, 160 págs., R$ 43) compila alguns de seus textos publicados na imprensa, atuação que lhe custa até hoje o ódio de bossa-novistas, tropicalistas, jazzistas, roqueiros e outros times.E, ainda, com a publicação da biografia "Tinhorão - O Legendário" (Imprensa Oficial, 280 págs., R$ 20), de Elizabeth Lorenzotti, e a instalação na sede carioca do Instituto Moreira Salles do enorme Acervo Tinhorão, fica difícil suas ideias não voltarem à tona, embora muita gente as preferisse sepultadas."A figura do artista como conhecemos, romântica, vai acabar. O engenheiro de som vai ser mais importante do que o artista. Hoje, fabrica-se som, em breve não será preciso tocar nenhum instrumento. Quando vem uma dessas bandas tocar aqui, a imprensa exalta as toneladas de equipamento que elas trazem. Hoje, a música popular se julga por toneladas", afirma ele.O rap, o funk, a música eletrônica e boa parte da música pop já não têm os instrumentos como eixo, e sim as programações feitas em computador. Estas exigem musicalidade, claro, mas não a derivada de cinco séculos de música tonal, tradição que culminou nas canções, como aponta Tinhorão."Não existe mais gente buscando novas sínteses. A hegemonia hoje é a média, a repetição. Nada acaba, a canção de qualidade vai continuar a ser feita, mas viverá em nichos, como aconteceu com a ópera e o quarteto de câmara. [José Miguel] Wisnik e [Luiz] Tatit continuam a fazer canções porque gostam, mas não há como fugir do processo histórico", afirma, referindo-se a dois compositores-ensaístas que já criticaram sua visão do fim da canção."Processo histórico" é uma expressão que remete ao marxismo -ou ao "materialismo histórico-dialético", como ele prefere-, que foi a base de seus ensaios sobre música na imprensa, especialmente nos dois períodos no "Jornal do Brasil": 1958 a 63 e 1975 a 81. Eram ensaios porque Tinhorão costumava partir de um disco para fazer uma "análise sócio-histórico-cultural", o que seria impossível hoje, por falta de espaço, formação e porque nos acostumamos a dar dicas sobre um produto que será consumido, e não escrever sobre uma suposta criação artística.Críticos"Não sou crítico. Renzo Massarani, Edino Krieger e Mário de Andrade eram críticos, entendiam muito de música. Hoje, existem críticos de discos, que escrevem na base do "gostei" e "não gostei" e procuram agradar a sua corriola", diz.A formação marxista ajuda a explicar a sua aversão à bossa nova, a mais notória e longeva das brigas que comprou -e que lhe rendeu fortes ataques de Caetano Veloso e muitos outros, além de anedotas como a de que Tom Jobim começava o dia urinando num vaso de tinhorão, a planta.Para Tinhorão, o ensaísta, se havia influência do jazz na bossa nova, sendo esta "filha de aventuras secretas de apartamento com a música norte-americana", como escreveu em 1963 na revista "Senhor", João Gilberto, Tom Jobim e os demais estavam se afastando da cultura popular brasileira e entendendo como "de maior qualidade o que era produzido no equivalente de sua classe nos Estados Unidos". Mais do que nacionalista, Tinhorão estava e continua sendo, digamos, "classista". "Toda cultura é cultura de classe", resume, num axioma marxista."Tom era um bom músico, um bom harmonizador, mas não um criador. Eu tenho uma memória musical desgraçada, ouço uma vez e não esqueço, e posso te dizer que 16 músicas do Tom têm anterioridade", repisa ele, fazendo associações entre "Mr. Monotony" (Irving Berlin) e "Samba de uma Nota Só"; a "ouverture" da "Ópera dos Três Vinténs" (Kurt Weill) e "Sabiá"; o tema folclórico "Água do Céu" e "Águas de Março".São aproximações discutíveis, e Tinhorão não as chama de plágio. "Quando fez "Insensatez", por exemplo, ele não sabia que estava repetindo uma lembrança de Chopin."AutodidataTinhorão acaba falando de bossa nova mesmo sem ser provocado, embora logo no início da entrevista diga que odeia ser chamado pelo clichê de "polêmico" e que o tema não interessa mais. Só que é inevitável passar por ele para chegar ao fato de o autor não ter conquistado, apesar da profusão e da profundidade de seus livros, o reconhecimento que deseja."Daqui a 50 anos, quando se quiser conhecer a música brasileira do século 20, as pessoas vão ler Tinhorão, Zuza Homem de Mello, Sérgio Cabral, e aí sem influência dos julgamentos anteriores, feitos a quente", afirma ele, apostando que os futuros jovens o descobrirão.Quanto ao reconhecimento da academia, a revolta é maior e a esperança parece menor. Ele se vê alvo de preconceito por ser um jornalista que se tornou historiador autodidata, indo por conta própria às fontes primárias, especialmente no Brasil e em Portugal."Sou muito citado nos livros acadêmicos, mas só como apud [quando se aponta o autor que teve acesso à fonte original], porque eles não têm outra forma de dizer de onde tiraram aquelas informações, já que eu tenho obras que não existem nem na Biblioteca Nacional [no RJ]. Eles ficam citando [Jacques] Le Goff, os mesmos, estão presos na bibliografia europeia, em especial francesa", critica ele, garantindo nunca ter tido um dado de livro seu contestado. "Como não podem me refutar, preferem me tratar com o silêncio."Os ídolos de Tinhorão na música, como se pode prever, são os artistas populares que fazem muito com pouca formação e não mudam sua maneira de criar e viver mesmo após lançar discos e entrar na indústria cultural. Um paradigma é Nelson Cavaquinho."A originalidade dele resulta do seu primitivismo. Roubaram-lhe o cavaquinho, alguém deu um violão e ele, que era para ser um tocador de cavaquinho, virou um tocador de violão, daquele jeito único, que fundiu a cuca do [violonista clássico] Turíbio Santos. Com extrema limitação de possibilidades, ele conseguia fazer melodias inexplicáveis. Não tinha nem coordenação motora, sua letra ia subindo no caderno. Claro que eu tenho que elogiá-lo. Esse é um criador", exalta.
Tinhorão em perspectiva
Biografia relata formação do jornalista e historiador, que reúne em livro textos publicados na imprensa e faz abordagem original em obra sobre música popular do final do século 18
DA SUCURSAL DO RIO
Considere-se isso um mérito ou um agravante, José Ramos Tinhorão assume que o estilo ácido que fez sua fama não era apenas fruto de um inerente e incontrolável "veneno" -palavra que já foi muito usada ao lado de seu nome-, mas uma postura ideológica.
"Eu precisava marcar posição. Não ia dar colher de chá para aquele pessoal embrulhado numa coisa ilusória", diz, referindo-se a artistas influenciados pela música estrangeira.
É mais fácil entender essa postura, mesmo que para rejeitá-la, lendo a coletânea "Crítica Cheia de Graça" e a biografia "Tinhorão - O Legendário".
A primeira, antes de tudo, porque muito se fala (mal) de Tinhorão, mas pouco se lê seus escritos. E lê-los permite ter um contato direto com as fontes de tantas turbulências e perceber que havia uma ideia sob aqueles argumentos, ainda que se possa odiá-los -e, até hoje, é praticamente impossível ler os textos sem ter alguma reação passional a eles, prova da eficácia do "veneno".
Metralhadora
Nenhum disco era um tema em si para Tinhorão. "Realce" (1979) serviu para ele analisar a "americanização" de Gilberto Gil; "Brasil" (1981) para ressaltar o "mal" que o "violão gago" de João Gilberto e a bossa nova fizeram à música brasileira; "Desbunde Total" (1970) para reiterar que Johnny Alf tomara o caminho errado desde a escolha do nome artístico.
Para não se dizer que ele não falava de flores, há, por exemplo, dois artigos exaltando Geraldo Vandré (de 1974 e 1979, pós-exílio e pré-conversão aos ideais militares) e um, de 1973, tratando Chico Buarque como "o maior compositor brasileiro de música popular, ao nível da classe média de cultura universitária" -opinião que ele mantém. O livro ainda reproduz duas belas entrevistas com o sambista João da Baiana e o radialista Ademar Casé.
Tanto na coletânea de artigos quanto na biografia escrita pela jornalista Elizabeth Lorenzotti está um dos melhores textos de Tinhorão, censurado em 1975 pela direção do "Jornal do Brasil" por aventar a possibilidade de haver racismo no Brasil, tema que a ditadura não permitia. "Por que artista crioulo tem sempre que ser engraçado?" toca nos esforços da indústria cultural em estereotipar artistas negros.
Outro percurso brilhante Tinhorão faz em "Marx explica Menudo", em que mostra como os grupos de adolescentes se inserem na esfera de ampliação do mercado consumidor, e conecta isso com a ameaça da pedofilia.
Formação
Baseado, sobretudo, em entrevistas com o próprio biografado, "O Legendário" conta a história do menino de Santos, pai português e mãe filha de espanhóis, que se mudou cedo para o Rio -onde conheceu muitos personagens de seus futuros livros, como sambistas e malandros- e só voltou para São Paulo em 1968, para a primeira equipe da revista "Veja". Na década de 1950, na função de redator (ou copidesque, como se dizia) do "Diário Carioca" e do "Jornal do Brasil", ganhou o apelido que dá título à biografia, por causa da qualidade de seus textos-legenda -os que contam as histórias mostradas pelas fotos.
"A Música Popular Que Surge na Era da Revolução" está em outro terreno, o das obras do historiador Tinhorão que se tornam referência por causa das abordagens originais de assuntos remotos e das raras fontes de informação que ele oferece. (LFV)
É, tem gente prá tudo! Viva a democracia cultural!
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