quinta-feira, abril 01, 2010
Memórias de uma moça bem comportada-2 A censura do parecerista da Edusp
A carta da Editora da Universidade de São Paulo recusando meu livro era de 21 de outubro de 2003. Cerca de um ano antes, eu havia enviado os originais sobre o Suplemento Literário (SL) do Estadão, adaptado de minha dissertação de mestrado na ECA, para um parecer.
Demoraram a achar um parecerista, me disse a responsável. E ele ficou quase um ano com os originais.
Você não se sabe nunca quem é o parecerista, mas ele sabe quem é você.
Ele não recomendou a publicação, alegando, entre outras coisas, que Décio de Almeida Prado -- grande intelectual, crítico de teatro, professor da USP e editor do Suplemento Literário (1956-1967)--, fez “afirmações problemáticas” no editorial de apresentação do caderno, e que a autora “precisa manter um certo distanciamento crítico em relação a elas.”
E argumentou: “Exemplo: ao falar do público-alvo do suplemento, o crítico argumenta que ele deve se distanciar do “leitor comum” do jornal, para ele “um eufemismo que esconde geralmente a pessoa sem interesse real pela arte e pelo pensamento (...). Uma publicação que se intitula literária nunca poderia transigir com a preguiça mental, com a incapacidade de pensar, devendo partir, ao contrário, do princípio de que não há vida intelectual sem esforço e disciplina”.
E continuou citando Décio: “O leitor desprevenido mas de boa vontade” poderia “satisfazer a curiosidade nas secções meramente noticiosas”. E perguntou o parecerista: “Como ficaria a maioria dos leitores do jornal, inclusive o das colunas, editoriais, matérias assinadas? Não saberiam pensar?”
Mais: “Na conclusão, a autora reitera essas ideias, aceitando plenamente as de Décio de Almeida Prado, quase cinquenta anos depois. Desconsidera sua prática não elitista na coordenação do Suplemento, apesar desses equívocos do discurso de apresentação.”
Ora, eu falei o tempo todo na abertura que o editor proporcionava aos novos talentos, e que publicava até inimigos, ou seja, não se pautava, como é costume antigo, por panelas ou por preconceitos...
Ainda atribuiu uma frase de Hannah Arendt a mim, criticando-a no mesmo sentido, de que (eu, pois não entendeu que era ela) seria elitista.
Nunca soube, nem procurei saber, quem é e qual a formação deste parecerista, incapaz de compreender uma das frases mais repetidas em todas as ocasiões em que se discute o SL do Estadão, e em muitas outras: “Não há vida intelectual sem esforço e disciplina”.
O leitor do SL teria de ser, e era, diferenciado do leitor do jornal, porque o SL, embora apenso ao jornal, não era jornalístico, mas literário e artístico, como apontava o projeto do professor Antonio Candido. E este foi um dos aspectos que me atraíram para o seu estudo.
E assim, a edição do livro foi censurada pelo parecerista: ele não concordava com as ideias de Décio de Almeida Prado, e pontificava, arrogantemente, que eu também não deveria concordar com elas.
Mas quem é ele, este incógnito envolto em espessas e intransponíveis brumas acadêmico-editoriais? Ele pode ser comparado à unha do pé de Décio de Almeida Prado? Cujas ideias, mais de 50 anos depois, estão perenizadas em dissertações, teses, livros. E o Suplemento que editou é, ainda, um paradigma para todas as publicações culturais, perdidas e sem eixo, deste século 21? O próprio Estadão lançou recentemente um caderno cultural, o Sabático, em que reproduz, sempre, matérias do inesquecível SL.
Comentei certa vez o caso com o professor Antonio Candido. Ele me contou que o mesmo já aconteceu com ele, se bem me lembro, no México. “Estou em ótima companhia”, então, disse a ele.
Depois deste episódio, soube de inúmeros casos semelhantes -- nada exemplares, coisa feia mesmo- em editoras universitárias, tanto em Ciências Humanas quanto em Exatas. Muitas vezes os autores são desafetos de pareceristas, e tão somente porisso, jamais terão seus livros publicados ali: o parecer será negativo. Em outros, os pareceristas não estão à altura do que lêem. E etc.
Lamentável é tratar-se de uma editora da USP- a mesma Universidade onde foi elaborado e aprovado o trabalho por uma gabaritada banca de professores que recomendaram a publicação; que tratava de eminentes professores da mesma Universidade, de sua criação, e do início da Faculdade de Filosofia.
Se eu tivesse levado a sério este parecerista, o livro Suplemento Literário- Que falta ele faz! não existiria, e não seria hoje, como é, bibliografia obrigatória em todos os estudos acadêmicos que analisam a história da imprensa e dos suplementos culturais. Não teria o belo prefácio do professor Antonio Candido, que tanto me orgulha, sempre:
(...)“Este estudo bem feito, honesto e oportuno conta a história do Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo nos decênios de 1950 a 1970, registrando a mudança profunda que ocorreu nesse lapso de tempo no jornalismo, cada vez mais voltado para o imediato e o registro rápido. Partindo da boa fundamentação teórica e histórica, a autora analisa com precisão o material disponível, fazendo reflexões pertinentes sobre a função cultural da publicação estudada. Isto lhe permite mostrar qual foi o seu papel no momento e refletir sobre problemas da relação entre jornalismo e cultura. As conclusões são importantes e expostas com visão certeira sobre a natureza da imprensa cultural em nosso tempo”.
Não teria sido resenhado pela imprensa de vários Estados, por publicações de várias Faculdades de Jornalismo e de Letras (ler ao lado direito, em Marcadores,"Que falta ele faz") e não originaria tantos desdobramentos, palestras e discussões, até hoje. Publiquei-o quatro anos depois, em 2007.
Este é um alerta sobre o que se passa nos bastidores de uma editora como a Edusp que, só posso concluir, seleciona pareceristas aleatoriamente - quais são os critérios? - e ainda confia neles.
Uma universidade pública não pode ter uma editora gerida desta forma.
E parecerista não é censor, não tem de concordar ou não com o conteúdo da obra mas, no mínimo, deve ter o bom senso de opinar sobre sua relevância, ou a falta dela.
Oi Beth
ResponderExcluirSer franco não é para qualquer um.
Tampouco a verdade se pode dizer.
Deixe para lá.
Siga em frente.
O compromisso com a verdade é custoso, mas uma vez assumido, só se honramos temos alguma paz.
E por falar em Paz, feliz Páscoa
Arnaldo
Obrigada, amigo. Só revelei este fato porque não apenas eu passei por isso, quantos são/foram/serão injustiçados?
ResponderExcluirE não estou falando dos pareceristas em geral, mas apenas de um caso, e de uma editora universitária. Só conheci este até agora. Não estou generalizando.
Cara Beth,
ResponderExcluirExerci, entre mil outras atividades inglórias que a carreira me reservou, a tarefa de parecerista editorial e sou pessoalmente, e não obstante, muito crítico em relação a ela, vendo os pareceristas como seres frequentemente movidos por motivos baixos, carreiristas, ressentidos, invejosos e outros. Contudo há algumas coisas que gostaria de ponderar sobre a prática, menos para desculpá-la e mais por uma questão de adequada distribuição de responsabilidades, sobretudo as escamoteadas.
O parecerista é em geral um nome editorialmente desconhecido. As editoras preferem assim, para que possa ser bem mal pago: na média, o mercado paga entre R$ 300 e R$ 600 para ler um original, fazer um resumo que poupe os editores do trabalho pesado de análise e responder a um questionário de 4 ou 5 páginas (excepcionalmente pagam R$ 800 ou R$ 900 - R$ 1 000 jamais! - quando o original é um cartapácio de mais de 500 páginas). A função do parecer atende a uma praxe principalmente burocrática para a editora fingir que faz um trabalho sério e para que os editores justifiquem perante seus superiores ou os donos da empresa que sua escolha é criteriosa.
O peso do parecer na decisão de publicação é mínimo ou nenhum. Quando um editor ou subeditor quer publicar, ele o desconsidera, suprime de sua exposição de motivos e, se preciso, contrata outro parecerista para que faça um parecer favorável - e vice-versa. Isso vale para toda a escadinha hierárquica do depto. editorial: subeditores, editores assistentes, editores de área, editor geral e diretor editorial, por exemplo. Quando um parecer desfavorável coincide com a decisão prévia de não-publicação, o editor ou sub usa o parecer e descarrega sobre ele toda a responsabilidade, especialmente diante do autor, que assim guarda toda a sua mágoa para o parecerista.
Guardadas as devidas proporções, a responsabilização do parecerista tem suas semelhanças com o uso da demonização histórica dos nazistas como se fossem monstros à parte do resto da humanidade, e com isso apagar as culpas e responsabilidades dos outros lados vencidos e vencedores. Claro que os nazistas foram monstros, porém houve-os de todos os lados. Saber quais dentre eles foram os maiores é uma questão de detalhamento e informação que frequentemente é obscurecida ou ignorada pelos ingênuos ou mal-intencionados da demonização. Ex.: a informação de que por quase 10 anos houve campos de concentração para prisioneiros alemães, japoneses e italianos na URSS, nos EUA, na Europa Ocidental e - pasme! - no Brasil.
Seu amigo de sempre,
Ronaldo Antonelli
Caro Ronaldo
ResponderExcluirÉ um quadro triste este que você traça da profissão. Sou solidária. Entretanto, não estou demonizando os pareceristas em geral, muito menos os compararia aos nazistas, vade retro.
Apenas me referi a um caso particular, que aconteceu comigo, e em uma editora universiária. Soube ontem, por meio de um renomado professor, que os pareceristas da Edusp fazem o trabalho gratuitamente, são professores convidados para tal. Mas, pagos ou não, o cerne da questão aqui é outro: pareceristas não podem censurar o objeto da obra, e repito, devem apenas e tão somente opinar sobre a relevância da obra, ou a falta dela.Concorda?
Abração