segunda-feira, julho 28, 2008

O Caso Dantas e o habeas corpus da ONU



Do Terra Magazine

Márcia Novaes Guedes*

O episódio envolvendo o Sr. Daniel Valente Dantas e os demais investigados na operação Satiagraha acendeu o debate sobre o estado policial, as liberdades individuais, a falência do sistema penal/prisional, mas fechou os olhos para a mais recente condenação do país pela ONU em matéria de direitos humanos, expondo nossa fraca constitucionalidade.

Na Revisão Periódica Universal sobre Direitos Humanos, realizada pela Organização das Nações Unidas (ONU) e que é feita com base em dados coletados pelos próprios representantes da instituição e 22 organizações não governamentais (Ongs), o Brasil foi mais uma vez reprovado! O governo não cumpriu o prazo dado, a partir de 2005, de resolver as expulsões dos índios de suas terras; as execuções extrajudiciais de pessoas; a tortura nas prisões; a superlotação dos cárceres e a inumana condição dos presidiários. A perversa concentração de renda, que deixa na miséria 50 milhões de brasileiros e nos torna um dos cinco países mais desiguais do mundo, foi igualmente condenada.

A ONU revelou, ainda, que no Brasil são assassinadas 50 mil pessoas por ano, e dentre as vítimas preferenciais estão os jovens pobres e negros com idade entre 15 e 19 anos. Quanto à tortura, o relatório revela o que todos sabemos: é uma prática generalizada nas delegacias e prisões para obter confissões, com a tolerância de muitos juizes, que a definem como mero "abuso de poder" (Carta Capital, 05/03/08). A Constituição - perfumaria rara nas prateleiras das delegacias - define a tortura como crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia, e assegura aos presos o respeito à integridade física e moral.

Estudos revelam que o racismo é uma variante fundamental na compreensão do sistema penal brasileiro e no projeto genocida do estado. Segundo a professora/pesquisadora da UnB Ana Luiza Pinheiro Flauzina, "o sistema penal se presta mais ao controle dos indivíduos e dos grupos estigmatizados do que propriamente à prevenção/repressão dos atos infracionais. A morte é mesmo o produto por excelência da movimentação dos sistemas penais latino-americanos". Por isso, "o discurso da falência do sistema penal é falso, ele funciona e muito bem"! Mas, revelar essa relação promíscua entre racismo e sistema penal bate na resistência de vários grupos da "intelectualidade branca" - adverte a estudiosa (http://www.irohin.org.br). Como diz um certo João, que este ano faz 100 anos, "quem mói no as'pro não fantasêia".

Relembrando o caso. A apuração dos fatos envolvendo o banco Oportunity e o Sr. Daniel Valente Dantas muito se deve ao jornalismo investigativo de Bob Fernandes. O inquérito policial corre há quatro anos e é acompanhado e fiscalizado por um Procurador da República. A prisão temporária, decretada pelo juiz Fausto de Sanctis, teve suporte na Lei 7.960/89. Respeitáveis juristas afirmam que essa lei criou uma espécie de prisão para averiguações e seu verdadeiro objetivo é obrigar o investigado a confessar ou delatar. Ante a previsão legal da prisão preventiva, temporária seria inconstitucional. Certo, mas cabe ao STF o controle direto de constitucionalidade das leis. E a Lei 7.960/1989 segue incólume.

A segunda ordem de prisão foi dada ante a suposta tentativa de prepostos do investigado de subornar um delegado da Polícia Federal. A prisão preventiva visa garantir a instrução (colheita das provas) e a aplicação da lei penal. Sobre o poder do Sr. Dantas, o jornalista Mino Carta escreveu: ao inquirir uma autoridade da República porque não revelava o disco rígido do computador apreendido em seu escritório, respondeu-lhe: "se revelado, cai a República"! (Carta Capital, 16/07/08). Desse medo não padeceram os Juízes da Instrução Criminal da Itália durante a Operação Mãos Limpas.

O juiz Wálter Fanganiello Maierovitch, afirmou que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) foi ignorada, a instância atropelada e a Corte transformada numa UTI (Carta Capital, 16/07/08). Não é aceitável que a jurisprudência se cristalize e resista à emergência do direito e a expansão do sentimento de justiça. Direito é linguagem, e cabe ao intérprete atribuir sentido à norma. Essa interpretação não é arbitrária, conforme o gosto e conhecimento do aplicador. O processo hermenêutico exige uma pré-compreensão, que passa pelo "constitucionalismo paradigmático", o qual se nutre da paz e dos direitos humanos, colunas da democracia. Em direito, quem pode o mais pode o menos. Direitos fundamentais da pessoa humana gozam da qualidade de infinitude, portanto, quando ameaçadas as garantias das liberdades individuais, o atropelo de instâncias parece irrelevante, afinal, "homo sacer"!

Ocorre que na fila da UTI para ser socorridos se encontram amontoados, como resíduos sólidos, milhares de homens (igualmente "sacri") que se matam e matam uns aos outros numa guerra hobbesiana por falta de espaço físico indispensável para permanecerem presos. Recentemente, um Juiz que decidiu não compactuar com a "conspiração do silêncio" e aplicou o art. 5o, inciso XLIX da Constituição da República, foi duramente criticado pela mídia.

O "habeas corpus" da ONU. O Sr. Dantas não tem apenas um batalhão de mil advogados vigilantes ao mais leve deslize das autoridades quanto a seus sagrados direitos, mas revelou ter mais poder do que a ONU! Sua prisão desencadeou um profundo mal-estar na República, ao qual se seguiu um "concertamento" entre os Poderes, Judiciário e Executivo. Doravante, para a garantia das liberdades individuais dos "investigados criminalmente", a Constituição e o ordenamento jurídico em vigor não serão suficientes. Dentre as providências sugeridas encontra-se a dilatação do conceito de "abuso de poder"; limitação ao poder de investigação dos delegados da PF (Folha de São Paulo, on line, 22/07/07); a desobediência do Juiz de 1º grau, e a introdução no ordenamento do "Crime Contra as Prerrogativas dos Advogados". Mas, quanto à gigantesca "petição de habeas corpus" da ONU nenhuma palavra! A jurisdição é inerte e ao Organismo Internacional, ao qual o país está acreditado, desde 1948, falta legitimidade! A Bastilha que espere!

Não se recusa a reconhecer o inegável: o crescimento do estado policial, que se tornou mais evidente com o neoliberalismo e a ruptura entre poder e política, minando as garantias sociais. No Brasil, a polícia forte para os fracos e fraca para os fortes sempre foi a regra, desde a Abolição! Desse lodo se nutre tanto a crônica policial jornalística quanto a música popular brasileira de Noel Rosa a Chico Buarque de Holanda. Portanto, tentar associar a investigação policial e a firme atuação judicial na apuração e condenação dos crimes do colarinho-branco à violação de direitos humanos, como sinal a pôr em risco as liberdades individuais do brasileiro comum, é mais um enxerto plantado pela razão cínica para ocultar o óbvio.

Seguramente, a abertura do disco rígido do computador do Sr. Dantas poderia fazer cair a República, mas no sentido profetizado por Raymundo Faoro e revelado numa entrevista ao jornalista Mino Carta: "No Brasil, a elite encaminhou as coisas para ser elite, desprezando o povo e assim pensa que se moderniza: desprezando ou não sabendo que a chamada modernização passa pela destruição dela própria. A única maneira de essa elite encontrar uma racionalidade é deixar de ser elite e tornar-se cidadã". (Isto É, Senhor, 22/01/1992).

Essa racionalidade cidadã passa pelo cumprimento dos compromissos ajustados com a ONU, sob a indispensável interveniência do STF, guardião precípuo da Constituição Federal. A lógica genocida vai ceder à media que os cárceres passarem a receber hóspedes ilustres, os graúdos, cujo poder estremece a República. Até lá, a sociedade civil, frustrada, segue rindo-se com o adágio recolhido do dialeto siciliano: Giustizia, stava scritto su un portone e ci credette un minchione!


Márcia Novaes Guedes é juíza do trabalho em Guanambi (BA), doutora pela Universidade de Roma e professora de Direito Constitucional.

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