Escrita por Marina Gonçalves Garrote, 15 anos, obra de ficção para a aula de teatro do Colégio Santa Cruz, em São Paulo.
Marina diz que ama de paixão Clarice Lispector.
Querido Pai,
Não há como por em palavras o quanto é difícil escrever esta carta, principalmente devido à distância que se criou entre nós. Distância entre nós mesmos, e entre o que já fomos um dia. Ainda mais difícil que isso é não te culpar por essa distância, não dirigir a você toda minha mágoa, meu ódio, meus choros engasgados, e, quando minhas mãos não querem parar de tremer, quando eu me abraço no escuro tentando me proteger do que me devora por dentro, o culpado, criador desta distância é você. Em uma de nossas raras conversas, eu, cigarro aceso nas mãos, você, olhos cansados e insones, confessou que uma relação amorosa só funciona enquanto a outra pessoa o faz bem. No momento, mais pelo cansaço e pela ressaca tardia de sexta à noite, suas palavras não fizeram sentido algum, não tinham qualquer propósito. Foi ao chegar em casa, com minha mãe solitária como todas as noites, fingindo-me um sorriso para me consolar, que as palavras se juntaram e o sentido veio à superfície. Você estava tentando justificar porque as abandonara. Porque deixou-se ser passado de mão em mão, em meio a um corredor de mulheres amarguradas, violentadas, vazias, meras sombras de ser há muito mutilado, desprovido de qualquer sombra de identidade. Confesso que não apenas desprezei cada uma delas, como também cresci em meio às minhas manipulações e mentiras, em uma tentativa de afastar aquele bando de mulheres de você. Elas chegavam mascaradas, no baile do que você tanto chama de amor, sorriam o tempo todo, e você sorria também. Em algum momento, sem qualquer motivo passível de ser o causador, as máscaras começavam a rachar. Todas, exceto uma. A sua. E o artista, ao contemplar sua obra, aquelas tristes mulheres, de estilo quase surrealista, miseráveis, aquela obra cheia de humor negro, fugia assustado. Aquilo não podia ser amor, simplesmente não era, não o fazia bem. Elas não mereciam amor, apenas desprezo, aqueles seres de interiores horríveis, apenas visíveis após a queda das máscaras, pernas, braços, seios, corações distorcidos. Aquilo não se encaixava no que você desejava. E era aí, então, que você sentava para a tradicional conversa, na mesma mesa de canto, da nossa padaria favorita. Falava para duas crianças, sobre a complexidade das relações adultas, que estavam muito fora do alcance daquelas pessoinhas, rechonchudas, de aparência. Pessoinhas que, depois de tantas reviravoltas, haviam aprendido muito sobre o teatro da vida. O seu teatro. Elas aprenderam a fingir também, a manipular os outros e a si próprias. E mesmo com todas as mentiras, todas as mulheres partidas, nada disso era grave para mim. Você ainda era meu herói, em um pedestal reluzente, um mártir com o qual o destino teimava em ser cruel, o fazia perder empregos o tempo inteiro, rodar pelas cidades sem dinheiro suficiente para nos pagar uma comida, sem qualquer saída.
Eu nunca tinha entendido como seu amor se transformava tão rapidamente em ódio. Até o dia em que tirei minha máscara, já gasta, muito velha. Nunca me arrependi tanto de ter feito algo como o que fiz naquele dia. Porque, assim que eu tirei minha máscara, você viu em minhas faces, de traços cada vez mais femininos, o reflexo do que você mais temia. Fragmentos da mulher original estavam lá, a primeira do baile, a mais odiada, de mais horrendo interior. A minha mãe. A partir daí, ando sobre rochas, tentando não sentir o horror que é não mais fazê-lo feliz. O passado é apagado a cada queda, a cada rompante de choro, a trágica verdade pulsando cada vez mais em mim, lutando para sair, para que eu grite. Eu fico quieta.
O silêncio me traz pesadelos, me ensurdece, e cada vez as imagens são piores. A insônia, demônio rastejante que sempre te atormentou, agora me faz companhia. Morro um pouco mais a cada noite mal dormida, a cada levantar súbito, abraçando a mim mesma para aprisionar o que tanto quer sair, o que me devora, me tortura, lentamente me consumindo.
A morte agora é próxima, Pai, e você sabe. A última vez na qual nos vimos, nem mais um sorriso você tentou fingir, nem mais forças você teve para me abraçar.
Eu, sinceramente, espero que algum dia, eu possa te perdoar, pela criação do maldito abismo para o qual sou arrastada a cada manhã, abismo sobre o qual tentei construir uma ponte, uma identidade, um ser, e não esse fragmento de mentiras que teima em botar as últimas palavras que você talvez leia em um guardando imundo, em um bar qualquer.
Eu te amo, Pai.
Maria Antonieta.