domingo, setembro 05, 2010

Lima Barreto e a loucura alheia


















À direita, ultima foto no hospício.

"Diário do Hospício e O Cemitério dos Vivos" [Cosac Naify, 352 págs., R$ 55], reúne um diário e um romance inacabado, narrando as duas internações manicomiais por alcoolismo de Lima Barreto entre 1914 e 1920. Foram reeditados no mesmo volume, com fotos e crítica.
Ele morreu em novembro de 1922, aos 41 anos, e era internado durante durante as crises severas de depressão - à época um dos sintomas pertencentes ao diagnóstico de "neurastenia".
Sempre gostei dele, desde o colegial:O homem que sabia javanês, Triste fim de Policarpo Quaresma, Recordações do escrivão Isaías Caminha. Todos contra a hipocrisia desta sociedade que mantém, ainda, muitos dos traços ressaltados pelo escritor mulato e pobre. Quando o jornalista Sérgio Augusto foi trabalhar, na década de 1960, no Correio da Manhã, descobriu que até aquele ano o nome de Lima Barreto era probido de ser impresso lá. Confirmou a história em abril, quando o entrevistei no Rio.
Quatro décadas de censura.
Isto porque as Recordações são um roman à clef, exatamente sobre o Correio da Manhã.
Como Van Gogh e Fernando Pessoa, Lima Barreto morreu cedo. Assim como Vincent, louco. A "loucura" desses gênios sempre me pareceu uma profunda inadaptação à sociedade.
Amigo de Machado de Assis, que escondia sua mulatice, Barreto foi com ele, certa vez, a um enterro. Chegando lá, Machado disse que era sua mãe. Barreto ficou chocado, porque o amigo nunca tinha mencionado a mãe.
Desde menina, talvez por influência de mãe e avó materna, tão cheias de compaixão, sempre me atraíram os gauches na vida. Os fracassados? Não, os campeões do fracasso, como definiu um amigo meu uma vez.
Não são fracassados, a sociedade é que é. Como sempre se comprova décadas ou séculos depois que eles se vão.Simplesmente são muito frágeis para carregar tão descomunal peso.
Aqui, um trecho do terceiro capítulo do livro.

A minha bebedeira e a minha loucura

Eu sou dado ao maravilhoso, ao fantástico, ao hipersensível; nunca, por mais que quisesse, pude ter uma concepção mecânica, rígida, do Universo e de nós mesmos. No último,no fim do homem e do mundo, há mistérios e eu creio neles.
Todas as prosápias sabichonas, todas as sentenças formais dos materialistas, e mesmo dos que não são, sobre as certezas da ciência, me fazem sorrir e creio que este meu sorriso não é falso, nem precipitado, ele me vem de longas meditações e de lanceantes dúvidas.
Cheio de mistério e cercado de mistério, talvez as alucinações que tive as pessoas conspícuas e sem tara possam atribuí-las à herança, ao álcool, a outro qualquer fator ao alcance damão. Prefiro ir mais longe...
Certo dia a minha alucinação foi tão forte que resolveram levar-me para a casa de um parente, para ver se melhorava; foi pior. Mandaram-me para o Hospício. No mesmo dia que lá cheguei, no pavilhão, nada sofri. Assim não foi no Hospital Central, nem na Santa Casa, de Ouro Fino, onde as visões continuaram, no Hospital por mais de vinte e quatro horas e, em
Ouro Fino, unicamente na noite da entrada.
Agora, que creio ser a última ou a penúltima, porque daqui não sairei vivo, se entrar outra vez, penetrei no pavilhão calmo, tranquilo, sem nenhum sintoma de loucura, embora toda a noite tivesse andado pelos subúrbios sem dinheiro, a procurar uma delegacia, a fim de queixar-me ao delegado das coisas mais fantásticas dessa vida, vendo as coisas mais fantásticas que se possam imaginar.
No começo, eu gritava, gesticulava, insultava, descompunha; dessa forma, vi-as familiarmente, como a coisa mais natural deste mundo. Só a minha agitação, uma frase ou outra desconexa,um gesto sem explicação denunciavam que eu não estava na minha razão.
O que há em mim, meu Deus? Loucura? Quem sabe lá?