Elizabeth Lorenzotti
Valsa para Bernardo
Uma rua de paralelepípedos. Um homem magro, óculos de aros finos e aspecto melancólico. Um café, onde é freguês habitual e tem sua mesa cativa. Um mapa astral guardado no bolso traça o perfil de seu país. Os tons velados do crepúsculo. Alguém bate uma fotografia do homem caminhando pela rua e esta será uma das poucas imagens que conseguem roubar dele. Detesta fotografia, talvez como certos povos que acreditam ficar sem alma se sua imagem for capturada num instantâneo flash.
Este o ajudante de guarda-livros do escritório da Rua dos Douradores, Bernardo Soares. O escritório da Rua dos Douradores é a vida inteira.
“E, se o escritório da Rua dos Douradores representa para mim a vida, este meu segundo andar, onde moro, na mesma Rua dos Douradores, representa para mim a Arte.
Sim, a Arte, que mora na mesma rua que a Vida, porém num lugar diferente, a Arte que alivia da vida sem aliviar de viver, que é tão monótona como a mesma vida, mas só em lugar diferente. Sim, esta Rua dos Douradores compreende para mim todo o sentido das coisas, a solução de todos os enigmas, salvo o existirem enigmas, que é o que não pode ter solução”.
É como se ele me guiasse agora, indicando suas escrituras que melhor podem exprimir este momento em que caminha pela Rua dos Douradores, o lugar da vida e da arte, vizinhas de porta.
Ah, Bernardo, eu não te conheci de carne e ossos, apenas destes papéis escritos. Eu te amo porque não te conheço. E se me conhecesses, me amarias? Eu te pergunto nestes papéis escritos que não são a vida. Eu, que te amo por esses papéis escritos.
Neste momento
Sobe os degraus -- e é um homem jovem, mas carrega fardos invisíveis, e seus passos são arrastados.
Mal posso imaginar Bernardo dançando alguma vez em sua vida.
Mas sei que ele gostaria de poder se dar esse prazer.
Por isso eu o convido, agora, logo que gira a chave da porta antiga.
Uma valsa talvez? Bernardo, se dançares tua alma ficará alegre, porque teu corpo se alegrará. Assim: um, dois, três, um, dois três, um, dois, três. Melhor sem os sapatos, pisar o chão de pés nus. Sim, era só o que te faltava, pois. Uma mulher te tirar para dançar.
Mas por que queres que este ajudante de guarda-livros dance contigo?
Porque tudo vale a pena, Bernardo, se a alma não é pequena, e bem sabes.
Ele coloca o chapéu de homem de bem na cadeira de palhinha, acende um abat-jour, tira os sapatos, meio trêmulo a princípio, as mãos transpiram quando pegam nas minhas. Deixe-me vê-las, eu peço, observo as palmas e sua linha da vida é curta, a da cabeça cheia de acidentes e a do coração muito fina, quase invisível. Dá corda ao gramofone, em meio aos livros e discos de modinhas e de valsas espalhados.
Me encanta ouvir, mas dançar é reservado apenas aos deuses, ele argumenta.
Se dançássemos a vida, como nossos mais remotos ancestrais, eu te digo, Bernardo.
Se dançássemos até o que não tem solução, talvez, quem sabe, nos tornássemos mais fortes e mais sábios.
Talvez nos tornássemos mais belos, diz Bernardo.
A noite cai sobre Lisboa. A luz da lua entra pela janela do pequeno quarto alugado do guarda-livros da Rua dos Douradores, que começa a aprender a dançar.
Amanhã, quando o despertador tocar, às seis e meia, ele repetirá o ritual cotidiano de jogar água da ânfora na bacia de louça, (um, dois, três) lavar o rosto, bochechar com um líquido violeta, colocar os óculos de aros finos, escolher entre os poucos ternos e camisas e gravatas (um, dois, três), as meias de algodão, os sapatos de couro marrom.
Sairá de casa, um, dois, três, um, dois, três e no bar da esquina tomará um pingado com pão e manteiga, um, dois, três. Acenderá um cigarro e irá para o escritório, um, dois, três, um, dois, três, atravessando sua rua de paralelepípedos e casas com azulejos azuis e brancos, um, dois, três, um dois três, um, dois, três, um.