sexta-feira, fevereiro 27, 2009

Os revisores : Histórias das redações- 5

Tide Hellmeister


Bons tempos em que os jornais tinham revisores. Jamais sairia uma chamada de capa de grande jornal escrita assim:

EXCESSÃO, como vi algumas vezes, e recentemente.

E tantas barbaridades, incontáveis, cotidianas.

Graciliano Ramos foi revisor do Correio da Manhã na década de 40.

Mas no fim do século passado, com a informatização e a economia, dançaram os revisores.

O amigo Gabriel Arcanjo, que começou e durante muito tempo exerceu a revisão em vários jornais e revistas, conta umas histórinhas exemplares:



“Uma vez saiu publicado, na lista de promovidos das Forças Armadas, na Folha, em corpinho pequeno, ´almirantes de esquerda´, em vez de esquadra. Os hómi queriam a cabeça de todo mundo...

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Numa matéria sobre novos limites de financiamento do BNH, um revisor anotou, de brincadeira, ao lado da prova: ´com isso aí não dá pra comprar nem um barraco´; o linotipista, muito sacana, colocou como emenda e saiu publicado... Parece que deu até demissão.

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Num anúncio fúnebre do Estadão, saiu ´é com prazer que notificamos a morte de...´, em vez de é com pesar.

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O Estadão tinha o maior cuidado com algumas páginas: a do Editorial e a dos turfes. No mínimo, eram feitas umas três revisões de prova, mais uma da página pronta. E vira e mexe aparecia, num dos páreos, o cavalo REVISOR. Comentário geral na sala: só pode ser animal dos Mesquita...

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O Ventura, portuga dos bons, era da elite de revisores do Estadão, e sempre que consultado, dava a opinião dele. Quando alguém contestava, dizendo que o dicionário registrava algo contrário ao que ele dizia, o portuga era categórico: ´pois o dicionário está errado; eles são vurros...´


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O mesmo Ventura, depois que o Estadão foi pra Marginal, era da turma que saía de madrugada, quase dia clareando. Na volta, descia do ônibus ali na Consolação e batia ponto no Mutamba, pra uma bagaceira. Num dia, em vez de de continuar indo pra casa, ali perto, voltou pra Consolação, pegou o Samar( o ônibus que o jornal colocava pra transportar funcionários) que estava no ponto e voltou pro jornal. Passou pela portaria, pelos corredores, elevador... Estranhou que não tinha ninguém na Revisão e lá ficou... pegou no sono...até que alguém se lembrou de acordá-lo.

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Mas a melhor do portuga foi quando decidiu, de vez, parar com as bagaceiras de fim de expediente. Numa madrugada daquelas, passou firme e forte em frente ao Mutamba e não entrou... continuou mais uns passos e, já sobre o viaduto comentou consigo mesmo: ´és um forte; mereces uma comemoração... voltou pro Mutamba; e começou tudo de novo...

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Diário do Grande ABC, a meu ver, tem a legenda imbatível da Imprensa nacional. Era comum visitantes mais ou menos ilustres serem recebidos pela Diretoria e posarem pra fotos. Não me lembro os personagens, mas numa das salas vip tinha na parede a foto do governador. E calhou de sairem na foto um dos diretores do jornal, o visitante e, na parede, Quércia. Adivinha se a legenda não ficou: ´fulano’, Quércia e ´cicrano...´

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Numa outra legenda, atento e abnegado montador de fotolito deu aquela colaborada com a Revisão, que havia, segundo ele, deixado passar um pastel na legenda. Era época do ministro Euclides Quandt de Oiveira, mas o olhar atento do rapaz se fixou só naquela palavra estranha; não teve dúvida e emendou para Quando... e ainda correu pra avisar os colegas no dia seguinte: ´quebrei um galhão de vocês´...

Histórias das redações-4: Cascolac x João



Foto Cascolac, 19 de agosto de 1971


Na foto, perfeita, como se tivesse sido tirada ontem, João Gilberto e Tião Motorista nos estúdios da TV Tupi em 1971, quando os baianos voltaram do exilio.
Eles foram lá gravar um programa histórico, que infelizmente se perdeu nos desvãos e incêndios da TV Tupi. Soube por um amigo, que soube pelo Alvaro Moya, que existe o áudio desse programa na TV Cultura.

Imaginem a imprensa toda lá.

Imaginem Caetano, Gal Costa, João Gilberto jogando ping-pong a tarde toda, sem resolverem fazer o programa. Imaginem a imprensa toda esperando - e olhem que não havia esses prazos rígidos de fechamento que temos hoje.

Mas o que não se pode imaginar é que, pelos Diários Associados, estava o fotógrafo Cascolac. Nunca se soube seu nome verdadeiro, só o apelido. Diz o Zé Eduardo, então chefe de reportagem, que até o próprio Cascolac deve ter se esquecido do nome.

Negro alto, reluzente, Cascolac era setorista no Deic- Departamento de Investigações Criminais de São Paulo. (Na época havia jornalistas destacados para cobrir determinados setores - aeroporto, polícia, exército, etc. E não se esqueçam de que em 1971 o Brasil vivia sob o ditador militar Garrastazu Médici.)

Mas, por urgências da profissão, naquele 19 de agosto Cascolac foi destacado para cobrir artes & cultura. Desde a chegada dos baianos no aeroporto de Congonhas. Claro que ele, bom profissional das quebradas do mundaréu, como diria o Plínio Marcos, comportava-se frente à notícia como era seu hábito de repórter fotográfico da editoria de polícia.
Primeiro, posar para foto, todos juntos.

-Ô João Gilberto, quer por favor ficar aqui do lado do Caetano...

Que não gostaram nada, aliás.

E por acaso o Cascolac tinha alguma idéia de com quem estava falando? Vaga, quase nenhuma.

E lá vamos nós para o Alto do Sumaré, emissoras associadas do mesmo grupo dos Diários Associados, do falecido Chatô, o rei do Brasil. Empresas já iam caindo pelas tabelas, aliás.

Então, depois daquele nehem nhem nhem de jogo de ping-pong, finalmente a coisa vai começar.

João Gilberto, que já era chatésimo, começa o ensaio. Um pequeno auditório, chão de madeira.

Cascolac vem lá do fundo pisando com seus brilhantes sapatões pretos.

A diva da Bossa Nova fulmina e dispara alguma coisa como:

" Esse fotógrafo pode se por daqui pra fora. Eu não canto com barulho!!!!"

Frisson. Corações gélidos. Ranger de dentes. Eu, muito garota, fiquei morta de vergonha.

O grande Cascolac se retira, humilde.

A diva prossegue.

O programa foi editado pelo Hiroshi Fuji, então estudante da ECA USP. Ele me contou que ficou com o João Gilberto umas três horas ao lado, vendo o que cortava e não cortava.

O programa deve ter ficado bárbaro. Histórico. Mas dançou, como todos os arquivos dos extintos Diários e Emissoras Associados.

Como tanta coisa da memória deste Brasil.

O Cascolac também se foi.
Eu o encontrei muitas vezes em Perdizes, morávamos perto. Depois sumiu. E sempre brincava com ele: "Ficou rico, Cascolac?" Porque ele tinha ótima aparência e se vestia muito bem. Enquanto os fotógrafos dos Diários viviam sempre na pindaíba ( os pagamentos eternamente atrasados).

Sabe lá.

Incrivel é que eu soube, também recentemente, que o irmão do Cascolac era carcereiro do presídio Tiradentes, onde estavam os presos políticos e entre eles meu amigo, o jornalista Alipio Freire.
Que conhecia o Cascolac e um dia virou pro carcereiro e perguntou: "Você é irmão do Cascolac?"

Imaginem a cara do homem.

Mas o que eu quero dizer é, que se fosse hoje, eu viraria pro João Gilberto do Prado Pereira de Oliveira e diria que, como ele, o Cascolac estava lá para trabalhar, e levava a sério seu trabalho. Que havia ficado horas esperando acabar o jogo de ping-pong baiano e agora precisava fotografar o programa para sair no jornal de amanhã, entende?

"Ah, quem escreverá a história do que poderia ter sido?"