Este artigo foi publicado no site Congresos em Foco
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Márcia Denser*
Se considerarmos que as transformações histórico-culturais do século XX ocorrem no Brasil – mais especificamente no eixo São Paulo-Rio – quase sempre vinte anos mais tarde que nos Estados Unidos, mudanças decorrentes do processo de modernização e das circunvoluções do capitalismo tardio, e devidamente adaptadas ao nosso subcapitalismo periférico, um livro como Os Últimos Intelectuais, do historiador norte-americano Russel Jacoby, se torna bastante esclarecedor, uma vez que trata do desaparecimento do “intelectual público” – o autodidata culto sem formação acadêmica – que, ao migrar em massa para as universidades após Segunda Guerra, desaparece da cena pública norte-americana sem deixar sucessores.
Através dele é possível fazer algumas conexões e começar a entender a chamada Extinção do Pensamento, presente nos textos de Paulo Arantes, e o Silêncio dos Intelectuais, dos seminários de Adauto Novaes, fenômenos observados entre as décadas de 90 e 2000.
Mas voltando a Jacoby, este ressalta que o ponto crítico não é a novidade da situação, mas sua amplitude: quando – antes de 50 – as universidades americanas ocupavam apenas um certo espaço da vida cultural, seus defeitos e virtudes significavam uma coisa, mas quando – depois de 60 – elas dominaram toda a área, suas regras se tornaram As Regras.
Os últimos intelectuais a que se refere o autor são os críticos literários, filósofos e economistas norte-americanos que surgiram nas décadas de 30-40, como Edmond Wilson, Mary MacCarthy, Munford, Galbraith, Daniel Bell, Norman Mailer, Noam Chomsky, Susan Sontag, que dirigiam seus trabalhos a um público amplo e esclarecido. Mas os intelectuais das últimas gerações – os nascidos a partir da década de 40 – emergiram numa sociedade em que a identidade entre as universidades e a vida intelectual era quase completa. Nos Estados Unidos, ser intelectual significava ser um professor.
Evidentemente, textos acadêmicos ininteligíveis não constituem novidade, mas para Jacoby a questão não é o talento, coragem ou postura política, mas o fato de não ter surgido a oportunidade para dominarem uma linguagem pública; conseqüentemente, seus escritos não tiveram impacto público.
De fato, se a cultura pública é desvirtuada pelo dinheiro e pelo interesse privado, os intelectuais que sobressaem pouco significam. Por outro lado, uma cultura secreta sem contato com o público é absolutamente improvável. E improdutiva. A verdadeira cultura se alimenta do debate, do intercâmbio de muitas vozes, do exercício público dum pensamento crítico. Sem isso, ela se esteriliza.
Entrincheirados nas universidades, não importa quanto estes intelectuais produzissem: para o grande público, eles se tornaram invisíveis. Por optarem pela segurança de uma carreira (e aqui Jacoby inclui a esquerda norte-americana formada pelos radicais dos anos 60), eles mantêm uma relação de dependência com as instituições que os sustentam. Eles cresceram num mundo em que eram raros os pensadores independentes da universidade. Assim como as gerações anteriores de intelectuais quase nunca consideravam as carreiras universitárias, o inverso se tornou realidade. E considerar significa avaliar as oportunidades reais: reflete realidades sociais modificadas, não apenas desejos modificados.
E quais as causas desse deslocamento da intelligentsia para o restrito universo acadêmico? Que realidades sociais foram modificadas? A resposta a essas questões passa necessariamente pela reestruturação das cidades, pela expansão da educação universitária depois da Segunda Guerra Mundial e pelo desaparecimento do cenário boêmio.
Esboçando certa “sociologia da boemia”, o autor ressalta a importância dessa na formação de gerações intelectuais, uma vez que um modo de vida boêmio favorece a emergência dos novos talentos. Segundo Malcolm Cowley[1], escritores não surgem isoladamente, a intervalos aleatórios, eles aparecem em grupos ou constelações circundados por anos comparativamente vazios. Scott Fitzgerald escreveu que uma verdadeira geração tem seus líderes e porta-vozes e traz para sua órbita aqueles nascidos logo antes e logo depois.
Cowley revisa o clássico argumento de Max Weber de que a ética puritana – repressão, ascetismo, culpa – lubrifica as máquinas do capitalismo. E ética da produção que pregava a indústria, a previdência, a poupança pertencia a uma era anterior à máquina. O capitalismo recente não precisava de trabalho e economia, mas de lazer e gastos, não de uma ética de produção, mas de uma ética de consumo. Nesse conflito entre ética de produção antiga e ética de consumo recente, Greenwich Village, o bairro boêmio novaiorquino, teve um papel crucial: sua devoção ao prazer e à auto-expressão se ajustava ao “etos do mercado”. Donde que a boemia provou ser sua vanguarda. “Viver o momento” passou a promover o consumismo, acabaram-se restrições de preço e utilidade. Até a “igualdade feminina” – uma realidade na boemia – passou a vender cigarros. Em 1929!
Quarenta anos depois, a sexualidade e a subversão dos anos 60 comercializaram, popularizaram, banalizaram e, por fim, destruíram a ética boêmia que, sob o nome de contracultura, fundiu-se na corrente da “cultura” principal: a do dinheiro. E os shopping centers anti-tabagistas cortaram qualquer possibilidade de vida boêmia, senão de vida cultural propriamente dita tal como foi definida lá atrás.
Voltando ao sumiço do “intelectual público”: aqui também eles sumiram completamente.
E a nossa perda é ainda maior, pois se, para Russel Jacoby, os Estados Unidos jamais tiveram um pensamento crítico-cultural brilhante, e ele estava se referindo aos pensadores europeus – Derrida, Sartre, Camus, Habermas, Lacan, Foucault, aos escritores latino-americanos – Garcia Márquez, Borges, Cortázar – no Brasil, cujo pensamento tem origem no ensaísmo livre de Gilberto Freyre e Euclides da Cunha, tivemos intelectuais públicos admiráveis entre os anos 50 e 70 – Celso Furtado, Antonio Callado, Nelson Rodrigues, Antonio Cândido, Ferreira Gullar, Glauber Rocha, Stanislaw Ponte Preta, toda a turma do Pasquim (não quero ser extensiva) até Paulo Francis, morto em 1997, o último dos velhos dragões do pensamento independente a escrever na imprensa.
Realmente admiráveis, concordemos ou não com suas idéias.
E o que temos hoje? Diogo Mainard? O blog do Reinaldo Azevedo? Arnaldo Jabor?
Paulo Coelho? Lya Luft? Gabriel Chalita?
Sociologismos à parte, à vista dessa fauna não admira que qualquer intelectual de bom-senso prefira ficar calado.
[1] Editor e agitador cultural, publicou The Paris Review a partir de 1953, revista de língua inglesa editada na França, com as famosas entrevistas de escritores consagrados mais tarde publicadas em livro com o título de Writers at work, traduzido no Brasil como Escritores em Ação, pela Paz e Terra, e a série de três volumes de Os Escritores, pela Companhia das Letras.
PUBLICADO EM:26/05/2008
* A escritora paulistana Márcia Denser publicou, entre outros, Tango Fantasma (1977), O Animal dos Motéis (1981), Exercícios para o pecado (1984), Diana caçadora (1986), Toda Prosa (2002) e Caim (2006). Participou de várias antologias importantes no Brasil e no exterior. Organizou três delas - uma das quais, Contos eróticos femininos, editada na Alemanha. Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, é pesquisadora de literatura brasileira contemporânea, jornalista e publicitária.