quarta-feira, outubro 29, 2008

A ideologia sem ideais da sociedade de consumidores




Zygmunt Bauman
Publicado em La Repubblica, 16 de setembro de 2007
O sociólogo polonês escreveu este ótimo artigo antes da mais nova crise do capitalismo e de um certo abalo no "pensamento único". Vai continuar muito duro de roer esse pensamento e talvez demore muito qualquer mudança, mas é muito bom contar gente que esclarece as coisas como ele.



Em junho passado, pouco após sua eleição a Presidente da França, Nicolas Sarkozy declarou, numa entrevista televisiva: “Não sou um teórico, não sou um ideólogo, não sou certamente um intelectual: eu sou um concreto”. O que quer dizer com estas palavras? Com toda probabilidade queria dizer que crê firmemente em algumas convicções, enquanto com igual firmeza rejeita resolutamente outras.

Tudo somado, afirmou publicamente ser um homem que crê “no fazer, não no pensar” e conduziu sua campanha presidencial convidando os franceses a”trabalhar mais e ganhar mais”. Disse várias vezes aos eleitores que trabalhar mais duramente e por mais tempo para se tornarem ricos é coisa boa. (Trata-se de um convite que os franceses parecem ter achado atraente, mesmo que não o tenham de fato considerado unanimemente sensato do ponto de vista prático: segundo uma sondagem TBS-Softes, 39% dos franceses consideram que seja possível se tornarem ricos ganhando na loteria, contra 40% que consideram que se fica rico graças ao trabalho). Declarações como estas, se são sinceras, respeitam todas as condições da crença e cumprem a principal função que se espera das crenças: dizem o que se deve fazer e suscitam a confiança que, assim fazendo, se obterão resultados positivos. Manifestam, além disso, o comportamento agnóstico e partidário normalmente conexo com uma “ideologia”.

À filosofia de vida de Nicolas Sarkozy falta somente uma das características das “ideologias que conhecemos até agora”, ou seja, uma certa concepção de uma “totalidade social” que, como foi sugerido por Emile Durkheim, seja “maior que a soma das partes”, vale dizer diversa, por exemplo, de um saco de batatas e, por conseguinte, não redutível ao acúmulo dos elementos singulares nele contidos. A totalidade social não pode ser reduzida a um agregado de indivíduos, cada um dos quais persiga suas finalidades privadas e seja guiado pelos seus desejos e por suas regras privadas.

As reiteradas afirmações públicas do Presidente francês sugerem, ao invés disso, precisamente uma redução deste tipo.

Não parece que as previsões sobre o “fim das ideologias”, comuns e amplamente aceitas há vinte e três anos, se tenham realizado ou estejam por fazê-lo. As afirmações aparentemente paradoxais que citei indicam, ao invés, a surpreendente virada realizada hoje pelo conceito de “ideologia”. Em contraposição a uma longa tradição, a ideologia que é atualmente pregada pelas cúpulas para que seja apropriada pelo povo coincide com a opinião de que pensar na “totalidade” e elaborar concepções da sociedade justa sejam uma perda de tempo, enquanto irrelevante para os destinos individuais e para o sucesso na vida. A nova ideologia não é uma ideologia privatizada e, de resto tal noção seria um oxímoro, porque a provisão de segurança e confiança em si mesmos, que constitui o principal empenho das ideologias e a condição primária de seu caráter sedutor, seria irrealizável sem uma adesão pública e de massa. Mas ela é, ao invés, uma ideologia da privatização. O convite a “trabalhar mais e ganhar mais”, convite dirigido aos indivíduos e adaptado somente a usos individuais, solapa aqueles do passado a “pensar na sociedade” (ou na comunidade, na nação, na igreja, na causa).

Sarkozy não é o primeiro que procura aviar ou fazer acelerar tal transformação: a precedência cabe a Margaret Thatcher e ao seu memorável anúncio segundo o qual “não existe algo que se possa chamar de 'sociedade', existem somente o governo e as famílias”. Trata-se de uma nova ideologia para a nova sociedade individualizada, a propósito da qual Ulrich Beck escreveu que homens e mulheres, enquanto indivíduos, deverão agora encontrar soluções individuais a problemas criados pela sociedade e implementar individualmente tais soluções com a ajuda de capacidade e recursos individuais. Esta ideologia proclama que é inútil, e mesmo contraproducente, unir as forças e subordinar as ações individuais a uma “causa comum”. Ela perde de vista a solidariedade social, zomba do princípio da responsabilidade comum pelo bem-estar dos membros da sociedade, considerando-o fundamento do “Estado assistencial”; admoesta que interessar-se pelos outros é a receita para criar a aborrecida “dependência”.

Trata-se também de uma ideologia feita na medida da nova sociedade de consumidores. Ela representa o mundo como um depósito de objetos de consumo potencial, a vida individual como uma perpétua busca de transações que ocorrem tendo por objetivo a máxima satisfação do consumidor e o sucesso como um incremento do valor de mercado dos indivíduos. Amplamente aceita e solidamente acolhida, ela liquida com suas antagonistas com um seco “não existem alternativas”. Tendo, assim, redimensionado os seus adversários, ela se torna, para usar a memorável expressão de Pierre Bourdieu, verdadeiramente ‘pensée unique’, pensamento único. Pelo menos na parte rica do planeta a implantação desta impiedosa concorrência entre indivíduos não é a sobrevivência física, nem a satisfação das necessidades biológicas primárias e necessárias à sobrevivência, nem o direito de auto-afirmação, de se dar os próprios objetivos e decidir que tipo de vida se pretenderia viver.

Exercitar tais direitos é considerado, vice-versa, um dever de cada indivíduo. Além disso, parte-se do pressuposto de que tudo aquilo que acontece aos indivíduos seja conseqüência do exercício destes direitos, ou então, de gravíssimos erros em tal exercício, até sua blasfema recusa. Assim, tudo o que acontece aos indivíduos é, em geral, definido retrospectivamente como devido à responsabilidade de cada um. O que agora está plena e verdadeiramente em jogo é o “reconhecimento social” daquelas que são vistas como escolhas individuais, ou então, da forma de vida que os indivíduos praticam (por escolha ou forçosamente).

Reconhecimento social” significa aceitação do fato de que o indivíduo que pratica uma certa forma de vida conduz uma existência digna e decente, e por este motivo merece o respeito devido e prestado aos outros indivíduos dignos e decentes. A alternativa ao reconhecimento social é a negação de dignidade, isto é, a humilhação e este sentimento nutre ressentimento. É correto afirmar que, numa sociedade de indivíduos como a nossa, esta seja a mais venenosa e implacável forma de ressentimento que cada um pode experimentar, bem como a mais comum e prolífica causa de conflito,de rebelião e de sede de vingança.

Negação do reconhecimento, recusa de prestar respeito e ameaça de exclusão têm substituído desfrutamento e discriminação, tornando-se as formas mais comuns para explicar e justificar o descontentamento que os indivíduos experimentam no confronto com a sociedade ou daqueles setores e aspectos da sociedade aos quais eles são diretamente expostos (pessoalmente ou através da mídia) e dos quais fazem experiência de primeira mão. Isso não quer dizer que a humilhação seja um fenômeno novo, específico da atual forma da sociedade moderna, porque, ao contrário, ele é antigo quanto à socialidade e à convivência entre os homens. Isso quer dizer, todavia, que na sociedade individualizada de consumidores as mais comuns e “eloqüentes“ definições e explicações das aflições e dos mal-estares que derivam da humilhação deslocaram rapidamente, ou estão deslocando, a própria referência do grupo e da categoria às pessoas singulares.

Ao invés de serem atribuídas à injustiça ou ao mau funcionamento do organismo social, procurando, então, remédio numa reforma da sociedade, os sofrimentos individuais tendem a ser sempre mais percebidos como resultado de uma ofensa pessoal, de um ataque à dignidade pessoal e à auto-estima, invocando, então, uma reação pessoal ou uma vingança pessoal. Esta ideologia, como todas as ideologias por nós conhecidas, divide a humanidade. Mas, além disso, ela gera divisão também entre quem lhe presta fé, dando capacidade a qualquer um e tornando todos os outros incapazes. Deste modo, ela endurece o caráter conflituoso da sociedade individualizada/privatizada.

Debilitando as energias e neutralizando as forças que potencialmente estariam em condições de atacar-lhe o fundamento, esta ideologia conserva tal sociedade e torna mais frágeis as perspectivas de uma renovação da mesma.

terça-feira, outubro 21, 2008

Que falta ele faz!

Do site Cronópios

http://www.cronopios.com.br/site/resenhas.asp?id=3582

6/10/2008 17:09:00

Que falta ele faz!



Por Branca Ferrari




Há 52 anos, em outubro de 1956, nascia o Suplemento Literário do jornal “O Estado de S. Paulo”, um dos projetos mais ousados já desenvolvidos no país em prol da literatura e da arte. Entre seus criadores e realizadores estavam intelectuais do porte de Antonio Candido, Décio de Almeida Prado, Wilson Martins, Paulo Emílio Salles. Entre os colaboradores, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Netto, Mario Pedrosa, Sérgio Buarque de Holanda, Lêdo Ivo.

O resgate histórico desta experiência cultural inigualável foi feito pela jornalista Elizabeth Lorenzotti em seu livro “Suplemento Literário – Que falta ele faz!”, lançado pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. Com a acuidade do bom jornalista, a autora percorre a extraordinária trajetória do Suplemento Literário, desde sua concepção e desenvolvimento ao seu desaparecimento, recheando-a com entrevistas feitas com muitos dos personagens que participaram deste projeto. “O Suplemento nascia com a natureza artística”, diz Lorenzotti, mantendo absoluta independência e autonomia em relação à direção de redação do jornal diário. E durante sua existência jamais abandonaria a meta traçada por seus criadores, o de ser uma espécie de revista de cultura, livre de preconceitos literários e artísticos.

O farto material pesquisado pela autora comprova isso. O único critério exigido para aparecer no Suplemento era a qualidade literária e artística das obras. Não havia preconceito em relação ao novo, “maldito”, ou engajado politicamente. Suas páginas seriam abertas a bons poetas e escritores, consagrados ou novos no mercado. Ali seriam publicados, ao lado de Drummond, Bandeira, Vinicius, Murilo Mendes, Osman Lins, Guimarães Rosa, jovens como Lygia Fagundes Telles, Dalton Trevisan, João Antônio, Delmiro Gonçalves, Thiago de Mello, Geir Campos, Jamil Haddad e concretistas como os irmãos Campos e Décio Pignatari numa época em que eram vistos como uma espécie de moleques irresponsáveis.

Elizabeth resgatou alguns textos surpreendentes do Suplemento para o leitor de seu livro. Entre eles, um conto inédito de Guimarães Rosa, “Fita Verde no Cabelo”; uma original ficção de Lêdo Ivo sobre Rimbaud em visita à biblioteca municipal de Charleville, “O Consulente Indesejável”; um conto inédito de 1966, “Ulisses”, de nosso grande compositor, cantor e agora escritor, Chico Buarque de Holanda.

Chama a atenção, também, para o lamento de Wilson Martins e de Edgard Cavalheiro sobre o panorama literário da época. Dizia entre outras coisas o primeiro: “... porque se há pouco papel, existem ainda menos leitores; só é leitor, pelo menos no Brasil, os que foram realmente mordidos pelo vício da leitura; a expansão do livro em públicos mais largos, além de continuar no terreno das coisas ideais, não pode ser paga pelo preço ruinoso representado por uma queda no nível das obras editadas...”. Já o segundo observava: ...“não é fácil, por exemplo, para o autor nacional ainda inédito encontrar quem lhe publique as primícias poéticas; livros de contos ou ensaios só excepcionalmente são editados...”. Cinqüenta anos passados e com todo o extraordinário progresso tecnológico assimilado, o quadro literário do país lamentavelmente não mudou muito.

“Suplemento Literário – Que falta ele faz!”, de Elizabeth Lorenzotti, é um dos livros indispensáveis para os que se preocupam com a produção cultural brasileira. Ele não só provoca reflexão sobre a ousadia deste projeto como sobre a ausência em nossa época de alguma coisa semelhante para estimular e fazer avançar a literatura e arte em nossos dias.


Suplemento Literário – Que falta ele faz
autora: Elizabeth Lorenzotti
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 208 páginas
(consulte usando a ferramenta de busca de livros
da parceria Martins Fontes - Cronópios)




Branca Ferrari é jornalista com passagens por jornais da capital como o Estado, Diário do Comércio; por revistas especializadas da Ed. Abril e da área médica; por editoras (Marco Zero, Best Seller, Azul, Canudos), onde atuou em projetos especiais, preparação de texto, tradução; por assessorias de imprensa; pela Rádio 9 de Julho na produção de programa sobre Direitos Humanos. Atualmente desenvolve projetos pessoais. E-mail: brferrari@uol.com.br

segunda-feira, outubro 13, 2008

Carta do poeta Manoel de Barros

Achei no meu baú: resposta delicadissima do poeta Manoel de Barros a uma carta minha, em 1990.

Elizabeth Lorenzotti
Querida amiga

Recebi suas queridas palavras. Muito obrigado.
Essas falas de cangar sapo ou cangar grilos aprendi no Pantanal onde fui criado brincando com terra, debaixos das árvores, sem cuidado de babás e sem a castradora orientação das xuxas.
Mas grilo e sapo são bichos que a gente não consegue cangar. Sapos porque não têm pescoço para receber a canga. E grilo porque prisca demais e não permite canga. Creio que daí vem a expressão que seria o mesmo que dizer:
Vá ser à toa na vida.Vá enfiar gota de chuva em cordão. Essas coisas

Vá tirar leite de veado correndo. Essas coisas."

Escrevi para o poeta,que tinha conhecido via o fotógrafo Marcelo Buainain em uma reportagem lá no Mato Grosso- ele me conseguiu um exemplar onde li algo que me lembrou imediatamente minha tia Alzira, lá de Poços. Era uma figura doce e muito estranha - almoçava às 5 da manhã, extremamente magra e enrugada e segundo a família, ficou assim por desgosto, o pai não deixou que ela casasse com quem amava.
Bom a tia Alzira, quando lhe enchíamos o saco, disparava:
"Vai cangar sapo!"
E eu nunca soube o que era, até o gentil poeta me responder.
Pois é, como botar canga em sapo? Em grilo?
Cartinha preciosa.
Dessas coisas...

domingo, outubro 05, 2008

Não te amo mais

Peter Scheier-1950
Cortiço do Brás


Laisses-moi devenir

L’ombre de ton ombre

L’ombre de ta main

L’ombre de ton chien

Ne me quittes pas

Ne me quites pas

Ne me quittes pas

Jacques Brel


Quando deixei de me apaixonar pela minha cidade? Desde que andávamos a pé pelo Viaduto do Chá, estudantes de colégio estadual, para ouvir as conversas dos outros?

E para estudar na Biblioteca Municipal? E depois, um passeio pela Consolação com São Luiz, entrando no Cha Mon e pedindo cafezinho para quatro: aqui não servimos cafezinho meninas.

Mas quando, quando foi? E mais tarde, os passeios noturnos, sempre a pé, vindas de ônibus da distante zona norte para o maravilhoso, então, centro da cidade: cantinas com toalhas xadrez nas mesas, vinho, spaghetti, risos, beijos sob o viaduto, lágrimas, amores vãos.

O apartamento no bairro operário, a ex-fábrica de tijolos aparentes em frente à janela, o baú com tantos escritos, mesmo ainda tão jovem: Largo do Pari.

E antes, o Brás. Ex-italiano, já se tornando nordestino. Lar dos avós italianos e bisavós portugueses, da mãe. Rua Catumbi, rua Cavalheiro, passei ontem por lá, noite, não mais a pé... Rua Cavalheiro que imaginava vasta, como minha avó Julia dizia- mas é tão pequenina, quase um beco.

E casas ainda restam, tão velhas. Moradias em cortiços na rua Marcos Arruda, onde a tia Judith com seus 20 anos criava dois filhos sem brinquedos, enterrava uma menina e tinha de lavar, todo santo dia, privadas coletivas. Hoje ainda são as casinhas ali, não mais a farmácia da esquina, não mais as cadeiras nas calçadas.

Mas quando deixei de me apaixonar, eu que nem conhecia esse lado do Brás dos trabalhadores italianos,e espanhóis e portugueses e brasileiros todos, e tantos? Nem tinha nascido.

Que nostalgia esta, então, ao passar por essas ruas do bairro histórico e tão abandonado, numa noite de sexta? Lá onde ainda se vêem velhos pelas ruas, muitos.

Onde ainda há portões e jardins, escondidos alguns. A casa mais bela, na esquina da rua Martim Francisco, que emoção essa ao ver, sobrado grande de tijolinhos aparentes, jardim, luzes acesas, quartos com varandas. E parece, uma lareira talvez.

Numa travessa, um estreito corredor fechado por um portão. Uma espécie de vila, com casinhas ao lado direito de quem entra, algumas reformadas, outras iguais ao que eram quando foram construídas, mais de 50, 60 anos e é como uma outra cidade, não essa, tão avoada, que Deus te proteja de seus perigos, me diz a tia Judith lá das Minas Gerais.

(Quem bom que a gente pôde mudar daquele cortiços, ela me diz hoje, que sorte ter a família se mudado para a outra cidade escondida no meio das montanhas).

E de longe ouço os ecos do português italianado: que sputza, dizia minha mãe. (Que não era filha de italianos, mas de brasileiros descendentes de portugueses e de índios, na árvore distante). O sangÜE -- dizia a vô Maria --italiana, mãe do pai. A comida forTífica, mangia que fa benne).Marchejani, ela era de lá, da região de Marchi.

Mesmo hoje, mesmo sendo outro bairro, embora o mesmo, e eu sendo outra, embora a mesma, bate tanto sentimento. E se “o sentimento é tudo”, como descobre o Fausto de Goethe, é preciso ser forte o bastante para não transformá-lo num roteiro de filme de quinta categoria.

Mas do bairro onde me criei , no alto do morro - e sempre acabo morando em altos de morros, como verificou meu amigo cartunista/carteiro Eton - da zona norte, não tenho saudades. Lá, da lama que se formava durante as chuvas, das galochas que tínhamos de usar sobre os sapatos para chegar ao asfalto, de lá não há como sentir saudades.

A não ser do luminoso colégio estadual que salvou muitas de nossas pequenas cabecinhas.

Mas eu ainda amava minha cidade, mesmo assim. Fora daquele bairro, eu queria sair daquele bairro, queríamos atravessar o rio Tietê -- não como ele, o garoto filho de árabes, que desejava o glamour e a grana dos Jardins. E foi.

Queríamos o cinema, o teatro, a biblioteca, a livraria, o jornal. (E fomos ). Que estavam, sim, do outro lado do rio ( em que margem?)

Amava o Vale, o prédio dos Correios, o Largo de São Bento, a Praça do Patriarca, a loja que vendia bombons. O grande magazine em frente ao Teatro Municipal, onde entramos muitos, mas muitos anos depois.

Na Vila Maria Zélia, moradias criadas pelo industrial Jorge Street para seus operários da fábrica de tecidos, linda, devastada, entrei para escrever uma reportagem, tantos e tantos anos depois.

Cacos de uma era.

Ex-vilas operárias ainda resistem, reformadas, ruas fechadas por particulares. E sobradinhos, característicos da cidade que se verticalizava tão cedo, espaço ficando caro.

Por que tanto me tocam o coração:

--estátuas de santinhos às varandas, também chamadas de alpendres, iluminadas por uma lampadinha;

--ladrilhos com quadrinhos pendurados- Deus guarde nosso lar; Feliz foi Adão, que nunca teve sogra e nem caminhão;

--andorinhas de louça num vôo estático, pregadas;

--e a Santa Ceia.

Minha casa minha casinha, dizia a vó Julia, não troco por um palácio.

Não sei mesmo quando meu amor pela minha cidade se acabou.

Quando ela me deixou? Naquele arremedo de hospital público onde morreu minha mãe, eu sei. Quando talvez a jovem médica residente tenha “diminuído o investimento”-que é como eles chamam os aparelhos. Quando eu urrava pelas ruas saindo do Incor, e todos olhavam, lá onde minha mãe não conseguiu uma vaga na UTI, ficou num puxadinho de um pronto socorro improvisado.

E onde mais?

Nos dois semáforos onde, no mesmo dia,em horários diferentes, vieram os meninos: um me roubou, o outro acreditou que eu não tinha mais nada e se foi?

Na Avenida Brasil quando um menino com os braços escondidos nas mangas (subentendendo uma arma?) queria dinheiro, a voz se fazendo de grossa. Não tenho, eu disse, mas tenho essas balas e ele abriu as mãos desarmadas e levou as balas?

Como deixar de tremer e de chorar, sem mais paixão, apenas a dor?